‘Zungueiros’ vencem a luta pela sobrevivência

‘Zungueiros’ vencem a luta pela sobrevivência

Todos os dias úteis da semana a cidade de Luanda é invadida por pessoas de vários bairros que vão em busca de sustento. Muitas dessas pessoas são provenientes de várias províncias do país e vêm para a capital em busca de melhores condições de vida. Actualmente, presumese que a capital angolana tenha cerca seis milhões de habitantes, o que representa a maioria do total da população do país.

Nesta senda, OPAÍS traz à estampa a história de jovens que, não estando vinculados a nenhuma instituição, trabalham por conta própria para a sua sobrevivência. Um deles é Flávio Adelino Kinguia, nascido a 28 de Novembro de 1980, solteiro, de 37 anos, vindo de Pambangala, Amboím, província do Cuanza- Sul, terceiro de 7 filhos de Isaac Kinguia e de Lucinda Adelino.

Depois da morte do seu pai, em 1988, a sua mãe viu-se obrigada a mandar os filhos para Luanda, para casa dos seus irmãos, para poderem estudar e serem homens dignos. Porém, as coisas só pioraram, Flávio viu os seus sonhos mais uma vez interrompidos quando a sua tia Maria (nome fictício) morreu num acidente de viação…nos dias a seguir ao funeral voltou para sua terra natal…

Dois anos depois, por doença, o jovem sonhador volta para Luanda, onde foi abandonado no hospital Josina Machel por cerca de 7 meses. Quando saiu, Flávio, obrigado a deixar o hospital por não haver condições para o manterem lá, mais uma vez foi entregue à sua sorte. O menino abandonado foi obrigado a ir viver na rua, debaixo de pontes, em casas abandonadas, com 12 outras crianças de rua, que considerou terem sido os seus melhores companheiros de vida.

Nesses tempos, o garoto de Pambangala começou a ajudar senhoras nas compras, onde ganhava alguns tostões em troca de carregar pesados fardos e tudo o que podia, faina que durou alguns anos.

No fim da adolescência, conheceu Nando, aquele que viria a ser o seu mentor…colega das ruas e parceiro de lutas, juntaramse numa nova e grande amizade e, numa daquelas noites frias e molhadas, em que ambos estavam na Praça da Independência a falar dos seus sonhos e projectos de vida, chegaram à conclusão de que deviam fazer algo diferente para saírem das ruas, Foram zungueiros por mais de cinco anos, suportaram sol, chuvas, poeiras, corridas dos fiscais e outras circunstâncias, conforme contaram a OPAÍS, mas sobreviveram, tendo sido nesta actividade que conseguiram comprar terrenos, carros e começaram a sua vida de forma mais independe.

Hoje os jovens trabalham por conta própria Começamos a vender sacos de plásticos e lapiseiras BIC, porém, mais uma muralha se ergueu nos meus caminhos, numa tarde de boas vendas, vimos os nossos sacos e lapiseiras serem confiscadas pela polícia fiscal” Alguns zungueiros nas ruas da cidade de Luanda lutando pela sobrevivência ‘Zungueiros’ vencem a luta pela sobrevivência construir vidas melhores e realizar os seus sonhos.

“Foi então que começamos a vender sacos de plásticos e lapiseiras BIC, porém, mais uma muralha se ergueu nos meus caminhos, numa tarde de boas vendas, vimos os nossos sacos e lapiseiras serem confiscados pela Polícia Fiscal”, disse. Nessa altura, Flávio pensou em voltar para a sua terra, mas Nando insistiu que deviam tentar mais uma vez…

Foi então, que resolveram lavar carros junto ao estádio Nacional da Cidadela, onde depois de alguns meses conheceram um jogador de futebol que, tendo gostado do trabalho, convidou-os para cuidarem do seu jardim, ambos aceitaram e em pouco tempo já estavam a cuidar do jardim e dos carros de quase duas dezenas de moradores do bairro do Prenda.

Mas o pior estava por vir e o Flávio a contar. “Em 2003, quando tudo corria bem, Nando, o meu amigo motivador e mentor, morre por intoxicação alimentar”, lamentou Flávio. O garoto de Pambangala, com a morte de Nando, tinha perdido o seu braço direito, o seu ponto forte, que, antes de morrer, lhe disse a frase que lhe ficouna memória até hoje: “Nunca desistas de nossos sonhos”.

Ainda dominado pela dor da perda de Nando, Flávio continuou a fazer jardinagem, estudou, concluiu o ensino médio na área de informática e entrou para a universidade. O jovem especializou-se em jardinagem e em 2012 criou a empresa “Garden Dream”, onde tinha como funcionária administrativa a namorada, Sula, que tratava dos contratos, das finanças e de todo o stock. Em pouco tempo, já eram 4,5,6,7,8, 9 funcionários, pois o negócio estava a crescer…

Foi neste momento que Flávio conheceu uma das suas grandes quedas, quando em 2014 foi atropelado em plena passadeira por um condutor embriagado, que lhe causou a amputação do membro inferior direito. Enquanto, recuperava da amputação, Sula, a namorada, comandou as operações da “Garden Dream”…

Meses depois, Flávio Kinguia voltou ao comando da empresa e mesmo na cadeira de rodas ou de muleta, continuou cuidando de jardins. Daí em diante apenas conheceu conquistas atrás de conquistas. Hoje, a “ Garden Dream” tem mais de 90 funcionários e atende mais de 150 residências e edifícios das centralidades do Sequele, Zango 0, Nova Vida e em vários condomínios.

Flávio é casado com Sula Kinguia, têm dois filhos e trouxe para sua casa a mãe e os dois últimos irmãos. Durante as suas lutas, licenciou-se em engenharia informática e está construindo o colégio “ Sonho Verde”, que comportará 20 salas de aulas, campo multiusos e outras instalações, no bairro Dangereux, onde tem duas outras residências e uma estação de serviços gerais.

“Neste momento estou a escrever um livro em homenagem ao meu amigo, um livro que contará o seu percurso e todas as histórias de parceria que tive com Nando”, contou. Aos 37 anos, Flávio sente-se um homem realizado, mas os seus sonhos aumentam de tamanho todas as manhãs e, por isso, continua a luta feito louco para atingir todos os objectivos que tem.

Uma história de superação nas ruas de Luanda Um outro jovem também vencedor é Abel Chimuco, natural da província do Huambo, 35 anos de idade, que também veio para Luanda em 1997, em busca de melhores condições de vida. Tudo começou quando Abel Chimuco viu-se obrigado a deixar a sua terra natal, cidade do Huambo, assolada pela guerra, para tentar sobreviver em Luanda.

“Quando cheguei a Luanda comecei a viver com a minha irmã mais velha e a minha vida não estava a correr bem, porque não tinha nada para fazer e com a idade que tinha ficava mais frustrado, porque já tinha os meus sonhos”, explicou. Foi então que Abel Chimuco decidiu comprar alguns negócios no antigo mercado do Roque Santeiro para revender na zunga.

Eram utensílios domésticos como panos de louça, facas, talheres, entre outros. O jovem girava pela cidade de Luanda só para poder vender os produtos que tinha. Foram uns cinco anos nessa vida. Mas o dinheiro que conseguiu juntar serviu para comprar um terreno no bairro do Golf II e continuar os estudos que havia parado por causa da guerra. Entretanto,matriculou-se na Escola Católica de São José, no bairro Morro Bento, onde concluiu o ensino de base.

Quando a guerra cessou, decidiu regressar à sua província de origem e concluir o ensino médio. Foi então que, ao tentar continuar com os estudos, em 2005, Abel conheceu Lena, a sua actual esposa. Apaixonados, decidiram casar-se e formar uma família. Posteriormente, ambos regressaram para Luanda, onde já tinham uma casa própria para morar, fruto do seu trabalho de zungueiro.

“Quando regressei a Luanda decidi deixar de zungar e comecei a me dedicar ao negócio de fardo. Comprava a roupa de fardo no Hoje Ya Henda e revendia na praça da Madeira. Essa actividade durou mais de dois anos”, conta o jovem. Segundo ele, nessa actividade conseguiu juntar mais dinheiro e tirou a sua carta de condução, ao mesmo tempo matriculou-se na escola 17 de Dezembro, onde fez o curso Médio de Instalação Eléctrica.

“Depois de terminar o meu curso decidi trabalhar como taxista com o carro de um senhor, com o passar do tempo comprei um carro, porque já tinha algum dinheiro guardado que ganhei como zungueiro. Mais tarde comprei outro e hoje trabalho por conta própria”, contou Hoje, Abel Chimuco é casado e pai de quatro filhos, afirma ser um homem realizado e que não tem vergonha da sua história, porque consegue sustentar a sua família sem dificuldades.