Avelino Capaco: “A acumulação primitiva de capital acontece por arrogância política”

Avelino Capaco: “A acumulação primitiva  de capital acontece por arrogância política”

O Museu da Moeda, em Luanda, será o palco do lançamento na próxima Sexta-feira, 9, do livro “Acumulação primitiva de capital em Angola (1992-2017)- Propósito Político e suas justificativas”, da autoria de Avelino Capaco. Na obra, o autor explica o processo que ditou o enriquecimento de alguns cidadãos angolanos ‘escolhidos a dedo’, assim como as motivações políticas por trás de tais escolhas.

POR: Dani Costa
fotos de Daniel Miguel

Vai lançar nos próximos dias o livro ‘Acumulação primitiva de capital em Angola- Período 1992-2017- O propósito político e a suas justificativas”. O termo “acumulação primitiva de capital” vem desde Adam Smith, Marx, mas para muitos angolanos terá ocorrido somente durante o discurso feito pelo então Presidente José Eduardo dos Santos, em 2015, quando abordou o Estado da Nação. Como é que está a ocorrer este processo em Angola?

De que forma está a acontecer? Vamos dizer que estava a acontecer, porque segundo também li, provavelmente, 2017 foi o ano para dar o fim à acumulação primitiva de capital, fazendo fé no discurso do novo Presidente, João Lourenço. Como nós sabemos, no período transitório da acumulação primitiva de capital, esta teoria é tão maleável que permitia todos os defeitos possíveis, desde a impunidade, nepotismo, etc. Então, quando o novo Presidente vem com o discurso de acabar com estes males, presumi que isto vai dar um ponto final à acumulação primitiva de capital. Fez muito bem a introdução sobre esta teoria, mas gostaria de dizer que a importância da acumulação primitiva de capital surge exactamente quando se sai daquelas sociedades primitivas, em que a economia é encarada com uma perspectiva familiar. Com a introdução da divisão de trabalho, que significa interdependência das partes, sobretudo depois da revolução industrial, então surgiu a necessidade de mercantilismo e de comercialização. Os países viram que era importante terem capitalistas. E, segundo Karl Marx, quando estamos perante o capitalismo, a ideia não pode ser baseada apenas no valor patrimonial que a pessoa tem, mas sim na ‘relação social onde o detentor de capital e aquele que não tem capital vai prestar o seu saber e, em contrapartida, receber o seu salário’. Estamos perante o capitalismo.

É o que se passou em Angola?

Em Angola aconteceu exactamente o mesmo sobretudo em 1992. Eu assumo o facto de a acumulação primitiva ter começada neste ano porque foi o período em que Angola assumiu a economia de mercado.

Isto em termos formais. Não há indícios de que alguns dos capitalistas dos nossos tempos tenham começado a acumular antes mesmo de 1992?

Do ponto de vista da teoria científica não podemos assumir que havia. O sistema em si, o modelo de economia na altura, por natureza, não permite. Poderá ter havido de forma clandestina, mas não de uma forma oficial. Por isso, preferimos assumir 1992, porque a acumulação primitiva de capital tem como suporte a economia de mercado, uma vez que estamos a falar de iniciativa privada. Portanto, quem vai acumular não pode ser o Estado, mas sim o cidadão. Só que a questão que se coloca é a seguinte: em que período é que um cidadão normal deveria ter tido acumulado capital para a economia derivada, que não seja por acumulação primitiva, mas sim uma acumulação de capital. Não havia tempo. E vou assumir aqui nesta entrevista que, se repararmos e olharmos para a história, a economia de mercado como a democracia em Angola foi impelida ou quase imposta. Antes de 1992, o nosso sistema era socialista. Acreditava-se tanto no socialismo, mas depois o paradigma mundial, com o fim da guerra fria em 1988, muitos países – e Angola não era o único- viram-se obrigados a adoptar um novo sistema. É aí que alguns países foram impelidos a adoptar a economia de mercado e a democracia. Angola não era diferente.

Regressando ao discurso de Novembro de 2015, o então Presidente José Eduardo dos Santos dizia que os países ocidentais tinham passado igualmente por uma acumulação primitiva de capital, razão pela qual os países africanos, como Angola, também poderiam fazer o mesmo, adequando-se aos nossos tempos. Como é que foi feita esta adequação no nosso país?

Eu tenho dito que a acumulação primitiva de capital em Angola legitima a riqueza de algumas pessoas. Se repararmos, a acumulação primitiva de capital em África, e também em Angola, depois da guerra fria, é muito diferente na forma de actuação em relação à acumulação de capital na Europa Ocidental. Na Europa Ocidental arrastou situações até desumanas. Estamos a falar do esclavagismo e a colonização. A colonização também é uma perspectiva de acumulação primitiva de capital, porque, depois do império romano ter sido rompido pelo império otomano, em 1453, os europeus ocidentais viram-se na obrigação de andar à procura de novos territórios. É assim que foram aparecendo em África, na Ásia e América Latina. Isto é acumulação primitiva de capital. Atrasaram durante séculos os povos destes países. Mas já em África, sobretudo em Angola, a acumulação primitiva de capital diferenciou-se. Aqui há um acumulação primitiva –e assumi no livro- legal que se enquadra no direito internacional público, porque foi feita de acordo com as especificidades do século XXI.

As justificações que apresenta são apenas jurídicas?

A justificação é jurídica e também até política. Eu tenho dito que a acumulação primitiva de capital acontece por arrogância política. É preciso explicar o que é isso de arrogância política?Era necessário que aquilo acontecesse. O título inicial do livro era ‘Acumulação primitiva de capital- um processo inevitável’. Porque um país que acaba de aderir a uma economia de mercado e de uma forma quase imposta não tinha como não acumular por razões políticas. Por isso, este livro é mais um ensaio político propriamente dito do que económico. Politicamente era necessário fazer isso. Quando estamos a falar de política, estamos a falar do poder. E quando estamos a falar de poder, estamos a falar de um dos factores que é a economia.

Os detentores de poder têm que ser necessariamente os maiores beneficiários desta acumulação primitiva de capital como houve em Angola entre 1992 e 2017?

Sim. Se repararmos hoje, a maior parte da economia angolana é conduzida ou está ligada a uma família partidária. Isto não é nenhum defeito. Aliás, o próprio então Presidente José Eduardo dos Santos dizia no discurso, em 2015, em que assumiu a acumulação primitiva, que precisávamos de ter empresários fortes, uma elite forte, para sairmos da situação de um país subdesenvolvido para desenvolvido. Isto só acontece numa economia de mercado com uma forte elite, grandes capitalistas e uma classe burguesa forte. Esta classe burguesa forte, naturalmente, por arrogância política, não devia ter sido outros elementos que não detém o poder.

A acumulação baseou-se num modelo concreto que se adequasse ao nosso contexto ou tão somente a uma arrogância política desencadeada por sectores da mesma família política que detém o poder em Angola?

Esta é a grande diferença que existe entre, por exemplo, o que se passou na África do Sul com o ‘The Black Empowerment’ com acumulação primitiva de capital. Do ponto de vista dos objectivos é o mesmo, isto é, enriquecer um grupo restrito, escolhidos a dedo por razões políticas. Mas do ponto de vista formal, o “The Black Empowerement” foi convencional. Sentaram-se à volta de uma mesa e vamos escolher este e aquele, tendo saído por exemplo Cyril Ramaphosa. Já na acumulação primitiva de capital, não foi convencional, não houve tempo de se escolher as pessoas, sentar- se à mesma mesa. Ali a escolha foi feita em função dos interesses políticos.

A forma como está estruturada a nossa classe empresarial, com alguns monopólios à mistura, não demonstra que terão sido grupos ou pessoas também escolhidos a dedo?

Sim, foram escolhidos a dedo, mas por razões políticas porque não poderiam ser outras pessoas. Depois de 1992, com os resultados eleitorais – e aqui um pouco de mea culpa à UNITA-, porque a UNITA teria sido parte desta divisão ou acumulação. A UNITA não aceitou os resultados eleitorais de 1992 e ao voltar para as matas significa que deixou o bolo todo com o MPLA. Por razões políticas, o MPLA não poderia dividir com a UNITA. Se a UNITA tivesse aceitado o segundo lugar, e é só olhar para os resultados, a diferença foi ínfima. Significa que tinham a mesma percentagem populacional. Se aceitasse a vice-presidência, este processo teria sido dividido entre dois partidos. Eu tenho dito em jeito de brincadeira que, provavelmente, hoje teríamos uma Isabel dos Santos e uma Isabel Savimbi. Hoje teríamos, se calhar, um Bento Kangamba dos Santos e um Bento Savimbi. Portanto, em ter mos de pólos de produção, o povo teria mais oportunidades de emprego. A UNITA não aceitou os resultados, voltou para as matas e adoptando o modelo de economia de mercado, que obrigatoriamente tínhamos que ter empresários privados, deixou todo bolo com o MPLA. Aqui a culpa também é um pouco da UNITA.

Mas estes governantes, hoje transformados em empresários, não serviram-se dos bens do Estado, o que constitui um crime?

Alguém tinha que ser rico neste país. Naturalmente, eu que estou a governar, tenho poder, vou enriquecer a pessoa mais próxima a mim, família, amigos ou companheiros do partido político. Parece maquiavélico, mas é assim que aconteceu em todos os países do mundo. Nós temos que fazer a nossa elite e não fazê-lo com aquela pessoa que não comunga a nossa ideologia política, sob pena de um dia eu perder o poder político. É isto que considero arrogância política. Esta teoria da arrogância política estudou-se em Ciência Política. O político que fizesse o contrário seria uma ingenuidade política. Precisamos compreender isso.

Acha que as críticas que são feitas ao MPLA e ao então Presidente José Eduardo dos Santos, que é a pessoa que terá liderado esta acumulação primitiva de capital, são infundadas?

Quando estamos perante um processo de acumulação primitiva de capital não se deve colocar muito a questão da justiça. É preciso ter isto em atenção.

Mas esta falta de justiça em relação aos casos que vão surgindo, como os de corrupção e outros abusos, não acaba por ferir o Estado de Direito e Democrático?

É preciso muita atenção. Nós estamos num processo transitório, num processo em que determinadas coisas terão que passar um pouco a perspectiva jurídica. Se não, pergunto o seguinte: ‘se colocarmos a questão da justiça no processo transitório de acumulação primitiva de capital, é justo que para surgir o ser humano tenha que ser por via de um parto? Já imaginou o quanto o parto é sangrento e as mulheres que nos digam isso? Por que não vem uma pomba branca do céu e nasce o ser humano? Por arrogância da natureza tem que ser assim necessariamente. A acumulação primitiva de capital é o período transitório em que se deve dar o dinheiro às mãos de algumas pessoas, por razões políticas, para que esses depois empreendam. Quando vamos aos Estados Unidos encontramos grandes indústrias, os magnatas, mas se formos estudar a história destas pessoas, também se beneficiaram porque os seus pais, os avós ou trisavós em determinados momentos também estavam com o poder político. Por isso, isso deve ser transitório que é onde surge a minha admiração por José Eduardo dos Santos. Ele conduz o processo em 1992, quando em 2002 atingimos a paz definitiva, havia vozes que diziam que ele tinha de deixar o poder. Mas eu fui buscar 11 empresas que na minha perspectiva beneficiaram deste processo e cheguei à conclusão que deste número apenas três tinham sido criadas antes de 2002.

Quais são estas empresas?

Cito por exemplo o BFA, a UNITEL, que são empresas criadas antes de 2002. A maioria das empresas foram criadas depois de 2002. Este processo de acumulação primitiva de capital não tinha sido concluído. O próprio ex-presidente José Eduardo dos Santos, mesmo tendo mais um mandato constitucionalmente, percebeu que tinha que acabar com este processo. Não tinha que ser ele a acabar com o processo. Quem conduz o processo de acumulação primitiva de capital não tem o acervo moral para poder responsabilizar aquelas pessoas com quem ele conduziu. Tinha que ser um outro player. Daí que estrategicamente ele tenha percebido e que está a corresponder muitíssimo bem.

É isto que faz com que algumas pessoas não sejam responsabilizadas?

Por isso vimos aí casos de amnistia.

Mas tivemos casos como o descalabro do BESA, o forte endividamento para com o BPC e outras instituições bancárias. É normal isso?

Já imaginou num processo de acumulação primitiva de capital responsabilizar as pessoas? Não teríamos a estabilidade política nem a paz que temos hoje. Parece que o MPLA é tão maquiavélico, e até quem ler esta entrevista vai pensar que sou deste partido, sou apartidário, mas isso são razões políticas e é histórico. O MPLA foi tão estratégico, porque se se responsabilizasse estas pessoas não teríamos a estabilidade política nem o país que temos hoje. É preciso perceber isso. Os discursos de João Lourenço mostram que isto está a chegar ao fim. Quando tive acesso à Lei de Repatriamento de Capitais, cheguei à conclusão de que só veio mais consolidar. Não está neste livro, porque quando conclui ainda não existia esta proposta. Hoje chego à conclusão que o que se pretende neste país é garantir estabilidade. Em 2015 fez-se uma Lei de Amnistia onde abrange até os crimes económicos com moldura penal até 12 anos. É estratégico isso. Se não houvesse essa Lei de Amnistia, significaria que se o MPLA perdesse as eleições, e fosse lá um partido da oposição, chamaria toda esta gente que se beneficiou deste processo para ser responsabilizada, porque o argumento seria o desvio de fundos públicos. Não teríamos um país estável.

Mas não é um contra-senso responsabilizar- se pessoas que se terão apropriado de pequenas quantias e os tubarões, que ficaram com dezenas ou centenas de milhões de dólares, saírem impunes?

É preciso esclarecermos uma situação: o repatriamento de capitais a que se refere João Lourenço não é para as pessoas que tenham enviado dinheiro de forma lícita ou que o conseguiram de forma honesta. Está-se a referir aos cidadãos que enquanto beneficiários do poder público, ou por ser filho ou sobrinho, desviaram fundos públicos. O que se passa é que os que desviaram fundos públicos, entre 11 de Novembro de 1975 até 11 de Novembro de 2015, estes crimes económicos estão amnistiados. O que se coloca nesta proposta de lei são os que desviaram desde 2016 até agora. Nesta proposta de repatriamento também há perdão fiscal. Quando se elaborou isso, há nível do Executivo havia duas propostas. Uma do Ministério das Finanças e outra do Banco Nacional de Angola, tendo esta última passado. Não há impostos, há perdão. É quase uma amnistia honestamente falando. Pode parecer que o MPLA pretende beneficiar cada vez mais os seus próprios interesses, mas eu quero fazer uma leitura muito mais política do que isso: o MPLA pretende chegar a um ponto em que tem que dar ponto final a tudo. Essa proposta que vai ser discutida, se for aprovada, significa amnistiar as pessoas que cometeram os seus erros e começar o país de novo. Só assim é que se vive. Se recorrermos à história, vamos encontrar a mesma coisa, não tão parecidas, mas com as mesmas linhagens políticas nos Estados Unidos, na África do Sul, no Zimbabwe. Está aí o Emmerson Mnangagwa, que tinha desaparecido, agora regressou como Presidente. Nós temos que garantir a estabilidade política. A questão que está aqui não é tanto os interesses. A oposição, a sociedade civil e algumas pessoas têm vindo a fazer populismo.

Considera populismo a proposta que a UNITA fez para que 45 % das verbas destas pessoas reverta a favor do Estado?

Não é realístico. Em primeiro lugar, não estou a ver um cidadão que tenha desviado neste período de 40 anos, sabe que está amnistiado, e trazer o dinheiro para lhe tirarem os 45 e ele ficar com os 55. Não é realístico. O segundo argumento é que muito deste dinheiro já está integrado. Dentro do combate ao branqueamento de capitais há três fases: a colocação, dissimulação e integração. Muito deste dinheiro já está integrado. Estão investidos em edifícios. Como é que se vai buscar este dinheiro que está investido em património? Não é realístico. Se o Estado vai tirar 40 por cento deste dinheiro que vai voltar, os dinheiros que estão fora do país – e isso também é um elemento muito importante no âmbito do combate ao branqueamento de capitais – para serem retirados daí têm que ser declarados. Uma vez declarada a origem, se for ilícita, os governos daqueles bancos vão exigir o processo-crime. Exigindo um processo-crime ou civil, tem que ter arguidos. Isso quer dizer chamar as pessoas que beneficiaram do processo de acumulação primitiva de capital e serem responsabilizadas criminalmente.