Lutaram, morreram e venceram no Cuito Cuanavale

Lutaram, morreram e venceram no Cuito Cuanavale

Há 30 anos, num dia como hoje, milhares de angolanos, entre jovens e adultos, travavam uma acérrima batalha contra o exercício sul-africano, após resistirem a um cerco que durou dezenas de dias, no triângulo do Tumpo, a 100 metros da localidade de Sá Maria

POR: Paulo Sérgio

Nessa localidade, a quatro quilómetros da sede do município do Cuito Cuanavale, província do Cuando Cubango, o cantar das armas de pequeno, médio e grande porte representava a esperança num lado e o desespero no outro. Eram vidas humanas a serem ceifadas. Entre os “bravos combatentes” lutavam, sem sequer imaginar que a vitória seria determinante para a Independência da Namíbia e o fim do regime segregacionista do Apartheid da África do Sul, estava Eusébio de Brito Teixeira, de 22 anos, exibindo a patente de tenente e a liderança de uma brigada de infantaria motorizada.

Integrava o grupo de efectivos da 4ª Região Militar, constituída pelas províncias do Huambo, Bié, Benguela e Cuanza-Sul, que foram enviados ao Cuito Cuanavale, cerca de 180 quilómetros a Oeste de Menongue, capital da província do Cuando Cubango, para reforçarem as forças do Governo angolano que defendiam a “ferro e fogo” a soberania do país recém tornado Independente. No terreno já se encontravam, desde 1976, os militares da 3ª Região Militar, liderados por Paulo da Silva Mungungu “comandante Dangereux”, na qualidade de chefe das Operações do Estado Maior General das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), coadjuvado por Marcelino Dias e João de Matos (os três já falecidos), entre outros. “Nos encontramos, aqui no Cuito Cuanavale e tomou-se a decisão de continuarmos a expulsar os sul-africanos, isto na Operação Kwenha, com o propósito de repor a administração do Estado no Cuando Cubango”, recorda.

A missão foi bastante espinhosa e durou mais tempo do que qualquer um deles poderia prever, incluindo os inimigos, com diversas batalhas pelo meio, as quais, o agora general na reserva, considera fundamental serem estudadas e valorizadas. Quatro anos depois, isto é, em 1980, o então Comandante em Chefe, José Eduardo dos Santos, deslocara-se ao Cuito Cuanavale para se inteirar do estado psicológico, moral e combativo das tropas, numa altura em que tinham perdido o município de Mavinga, a Oeste, para os invasores. “Foi a primeira vez que as tropas sul-africanas do batalhão 32, o conhecido batalhão Búfalo, atacaram a nossa unidade que estava em Mavinga e que recuou para aqui, no Cuito Cuanavale. Eu era o comandante da brigada que se encontrava aqui, na época”, disse Eusébio de Brito Teixeira, actual governador provincial do Cuanza- Sul.

Outras batalhas que determinaram o sucesso As tropas no terreno foram travando combates nas margens do rio Lomba, para, segundo relata, possibilitar ao antigo Presidente da República tomar a decisão de movimentar para o terreno as outras tropas que se encontravam no centro, nomeadamente, a 18ª brigada, que era comandada pelo oficial Zé Pedro (que chegou depois a general), já falecido. Enquanto isso, Eusébio Teixeira desembarcou com dois batalhões na localidade do Luengue para travar uma coluna sul-africana que estava a subir, a fim de permitir que a brigada comandada por Zé Pedro desencadeasse a ofensiva em direcção a Mavinga. Os integrantes da referida brigada foram introduzidos com sucesso e contra-atacaram, por via de uma operação dirigida pelo agora general Mbeto Traça, coadjuvado pelos oficiais João Baptista de Matos e Mário Cirilo de Sá “Ita” (ambos falecidos com grau de general). “O general Pírica estava encarregue pela logística e o general João Pinto pela parte técnica. Entretanto, introduziu-se a brigada do falecido general Zé Pedro para repor a defesa de Mavinga. Houve grandes combates”, afirmou.

O general realçou ainda que a batalha de Calueque também jogou um papel preponderante para a vitória na batalha do Cuito Cuanavale, “entre outras operações que devem ser, no meu ponto de vista, contadas”. “Isso é incontornável. Não devemos só falar dessa batalha, como também das outras batalhas, operações e campanhas que antecederam essa e jogaram um grande papel para o seu sucesso”, considera. Um ano depois, em 1981, por força das circunstâncias, num momento em que a Pátria precisava dos seus filhos, a direcção das extintas FAPLA decidiu suspender a missão que alguns deles, entre os quais Mateus Miguel Ângelo “Vietnam”, se encontravam a cumprir em São Tomé. Por ordem de José Eduardo dos Santos, fez-se a transferência da sua unidade, que se encontrava no Lândana, província de Cabinda, para esta zona. Foi nessa circunstância que Vietnam pisou pela primeira vez o solo do Rei Vunongue, como comandante de brigada. “Foi um percurso que me levou a estar sempre presente nos momentos decisivos até ao fim da jornada. Vim como comandante de brigada e acabei por passar por todas as estruturas até ao nível do Chefe de Estado Maior do Exército”, detalhou.

Da academia para a frente de batalha

A eles, todos os anos, se juntavam centenas de jovens recém formados nas academias militares nacionais e dos países com os quais Angola tinha acordos de cooperação, designadamente a antiga União Soviética, Jugoslávia e os Cuba. Um deles foi Remígio do Espírito Santo, na altura com 25 anos, que após concluir formação na Escola Inter-Armas de Oficiais, em 1983, foi imediatamente enviado ao campo de combate, no Cuito Cuanavale. Na época, foi destacado como comandante de pelotão de Tanques, mas durante a batalha ascendeu para comandante de batalhão de tanques.

Neste mesmo ano, para a antiga União Soviética, seguia um grupo de jovens angolanos para fazerem a formação militar que terminaria em 1987, entre os quais estava Paulo de Sousa Alves dos Santos. Assim que terminou a formação, regressou ao país e foi levado directamente para o Cuito Cuanavale, com a função de chefe de operações da 6ª Região Militar. O desafio era um: aliar a teoria à prática, adaptando-se à realidade no terreno. Para tal, revela que absorveu muita experiência do general Ngweto, que considera seu mentor. “Vim directamente para qui. Fardei-me e comecei a funcionar como chefe de repartições. Na altura, nem sequer tinha cinto. Foi extremamente difícil, principalmente para a minha mãe, mas a Pátria ordenava”. O tenente-general Remígio do Espírito Santo, actual comandante da 6ª Região Militar Sul, reconhece que não foi fácil vencer. “Comandar e combater é difícil, mas conseguimos graças ao empenho, ao sacrifício e à dedicação de todos, vergar o inimigo e cumprir a nossa tarefa”.

A derrota dos sul-africanos

Cinco anos depois, em 1988, a 23 de Março, Remígio do Espírito Santo e companheiros assistiram o inimigo a bater em retirada. Segundo ele, foi um dos momentos mais marcantes para todos os que se encontravam no terreno e que guardará para sempre na memória. “Destaco exactamente aquele que representa o fim da guerra nessa direcção, ou seja, o dia 23 de Março, quando vi os inimigos a baterem em retirada, isto é, a recuar”, declarou. O general Paulo de Sousa Alves dos Santos, actualmente exerce o cargo de chefe da Direcção Principal de Operações do Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas.

Já Mateus Ângelo “Vietnam”, general na reserva, recorda que os tropas que acabaram por fazer parte do último confronto, do dia 23, estavam em combate militar havia cerca de seis meses e, mesmo assim, “os nossos combatentes lutavam, os nossos combatentes morriam, os nossos combatentes venciam….”. Advoga, por outro lado, os investigadores a contarem a história recente de Angola tal e qual os factos ocorreram. Assim poder-se-á reforçar, de certa forma, determinados valores que do ponto de vista patriótico podem ser utilizados. “A nossa geração tem a responsabilidade de passar um testemunho sério, realista e convincente”. “A guerra terminou, mas a paz e a segurança são relativos. O país deve estar permanentemente preparado para se defender”, reforçou Vietnam.

Reconhecimento de Mac Muller e de José Eduardo dos Santos

No Triângulo do Tumpo, podese ler algumas das frases de Mac Muller, comandante do 61º Batalhão de Tanques do então Exercito Sul-Africano, escritas em inglês, que em português querem dizer: “Tumpo foi uma muito má experiência”. No mesmo sítio está também exposto um dos históricos discursos do então Comandante em Chefe, José Eduardo dos Santos, proferido a 25 de Dezembro de 1988, no qual descreve a batalha militar do Cuito Cuanavale como sendo a maior travada até àquela data no continente africano, a Sul do Sahara.

“Foi vencida brilhantemente pelas FAPLA que resistiram a mais de 60 dias de cerco. Foi o símbolo da determinação do nosso povo de vencer ou morrer pela defesa da Pátria”, lê-se no discurso. O Cuito Cuanavale preserva ainda hoje alguns dos meios militares das forças invasoras abandonados no terreno no momento da derrota. Até ao ano passado, estimava- se que dos 35.610 quilómetros quadrados que correspondem ao território deste município, apenas cerca de 70 quilómetros quadrados estavam livres de minas.

“Cartinha da Saudade” que animou a tropa

O músico Jacinto Tchipa, autor da emblemática música “Cartinha da Saudade”, que animou os militares em várias frentes de combate, descreve o memorial como uma obra linda e que dignifica tanto aqueles que aí perderam a vida, bem como os sobreviventes. “A história está toda contida nestas figuras”, considerou. Recordou ainda, em declarações a OPAÍS, que “era nossa obrigação fazer aqui a fogueira do combatente naquela altura. Animar as tropas na frente de combate. Este era o nosso trabalho, mas valeu apena”.