Vencer barreiras, mesmo às cegas

Vencer barreiras, mesmo às cegas

Readaptar-se a um novo estilo de vida, superar o preconceito e manter a auto-estima são alguns desafios que as pessoas que, independentemente da idade, perderam a visão têm de enfrentar quando são “sentenciadas” pela cegueira

Texto de: Afrodite Zumba

A vida de Eva Velasco, de 50 anos, sofreu uma mudança de 180 graus no dia em que um especialista confirmou que o glaucoma (doença ocular que provoca lesões no nervo óptico) havia afectado completamente os seus olhos, impossibilitando- a, assim, de enxergar. Até então, acreditava que a baixa visão que tinha nos últimos meses, antes de receber o diagnóstico de cegueira, era derivada da falta de adaptação aos óculos que lhe haviam sido receitados ou que a graduação fosse fraca para a sua necessidade.

“Ao ouvir esta notícia, fiquei completamente desesperada. Estava preocupada com a minha vida, o que seria dela, a minha família e o meu emprego? Estas perguntas vagueavam na minha mente e permaneciam sem resposta”, revelou. A entrevistada lembra que aos 32 anos já enxergava com dificuldade, ao ponto de necessitar de alguém para auxiliá-la. Todavia, em momento algum pensou que pudesse ficar cega, à semelhança da sua avó paterna que aos 80 anos perdera a visão. Por esta razão, considera que os problemas oftalmológicos na sua família são hereditários e atingem sobretudo as mulheres. “

Todas as minhas irmãs usam óculos”, declarou. Com receio de enfrentar o preconceito, adoptou a estratégia do “isolamento” para fugir da realidade. Entretanto, foi no seio da familia que Eva Velasco encontrou energias para continuar a viver, apesar de não poder mais enxergar as cores que pintam a natureza.

Recebi uma injecção de auto-estima

Ao longo da sua trajectória, Eva Velasco foi levada várias vezes à Escola Óscar Ribas (vocacionada ao ensino especial para portadores de deficiência visual), onde teve a oportunidade de conviver com crianças e adolescentes com a mesma deficiência. O intercâmbio levou-a a perceber que não tinha motivos para cruzar os braços, uma vez que outras pessoas viviam o mesmo problema e não desistiram da vida. “Eu chegava à casa e dizia: – afinal não sou a única cega. Eu posso ter uma vida normal”, ressaltou. A par desta, teve a oportunidade de ingressar na Associação de Cegos e Amblíopes de Angola (ANCAA), onde afirma ter encontrado pessoas acolhedoras e o apoio social de que necessitava.

“ Arrumo a casa, cozinho e até consigo coser”

Foi também na referida instituição que participou no curso de Actividades da Vida Diária, designado de “AVD” onde aprendeu como cozinhar, arrumar a casa e vestirse de forma autónoma,portanto, sem depender de terceiros. “Pensei que ficaria impossibilitada de fazer as tarefas domésticas. Depois de fazer o curso, consigo fazer funge, grelhar a carne e descascar batata.

Até consigo co-ser a roupa, é só alguém colocar a linha na agulha”, elucidou. No que tange ao vestuário, Eva Valesca esclarece que o treinamento que recebeu permite-lhe que se vista sem quaisquer dificuldades. Geralmente, quando vai comprar roupa, vai acompanhada por um familiar e tem a máxima atenção na escolha da peça de roupa. Uma das técnicas utilizadas, segundo ela, é perguntar ao acompanhante a cor da roupa, e apalpar o tecido, sentir a textura e analisar se tem algum detalhe, como franzidos, botões que posteriormente a ajudarão no reconhecimento.

Trata-se de um exercício que envolve o reconhecimento do vestuário, a memorização, e daí a organização do seu guarda-roupa. Para aumentar as suas valências académicas, três vezes por semana, nomeadamente às 2ª, 4ª e 6ª feiras, desloca-se à ANCAA, onde frequenta o curso de escrita em braille, à que diz estar a familiarizar- se. A concluir, Eva Velasco apela a todos os portadores de deficiência visual que vivem o processo de adaptação ao “novo mundo”, a não se desesperarem porque com apoio da família e dos profissionais é possível ter um estilo de vida normal.

Apoios vêm da Noruega

O curso de Actividade da Vida Diária (AVD) é promovido gratuitamente pela Associação de Cegos e Amblíopes de Angola (ANCAA), com o apoio da Associação Norueguesa de Cegos e Amblíopes (de sigla NABP), fruto de uma parceria que já dura há dez anos. “Queremos fazer muito mais, mas os nossos recursos são muito escassos. Dependemos apenas de um doador internacional, nomeadamente a Associação Norueguesa de Cegos e Amblíopes (de sigla NABP), com quem temos uma parceria há 10 anos. A nível local, há mais investimentos nos concursos de beleza do que para esta causa”, lamentou.

Madalena Neves, formadora da ANCAA, explicou, a OPAÍS, que esta formação, para indivíduos portadores de deficiência visual, no sentido de instruí-los sobre tarefas domésticas para exercê- las de forma autónoma, é ministrada em vários módulos, com duração de uma a duas semanas. Segundo a responsável, no primeiro módulo é trabalhada a autoestima dos formandos, para que se convençam que “o mundo não acaba quando se perde a visão”, bem como estimular-lhes o amor próprio, para que a sociedade os respeite e não os trate como mendigos. Posteriormente, são-lhes ensinadas algumas técnicas sobre higiene no lar.

“Uma pessoa com deficiência deve varrer descalça, para que possa perceber se à medida que vai varrendo ainda permanece lixo no chão”, explicou. Acrescentou, de seguida, que “existem técnicas específicas para cortar alimentos”.

Além de Luanda, a formação é ministrada nas províncias do Uíge, Malanje e Bengo, onde a referida associação está instalada. As turmas são formadas por 15 alunos, um número que Madalena Neves considera inferior ao estabelecido como meta pela Associação. Entretanto, realçou que tal facto se deve aos elevados gastos com a deslocação dos formadores e a compra dos materiais necessários. Em Fevereiro, a ANCA renovou o protocolo de cooperação com a Associação Norueguesa de Cegos e Amblíopes.

“Temos de acabar com a discriminação”

Por seu turno, Evalina Alexandre, membro da ANCAA anseia que em Angola os deficientes visuais deixem de ser lembrados apenas nas efemérides. Segundo ela, já é altura de eliminar as elevadas taxas de preconceito, como já se verifica em alguns países africanos, em que o “cego” é respeitado e consegue disfrutar de um estilo de vida digno. “ Na Zâmbia, Namíbia e África do Sul, o preconceito para com a pessoa com deficiência é quase inexistente. Queremos que olhem para a pessoa deficiente como membro da sociedade, que pode contribuir para o seu desenvolvimento”, assinalou