Autistas escondidos nos lares ou entregues à sorte

Autistas escondidos nos lares ou entregues à sorte

A denúncia é de Maria da Luz, mentora do projecto Coração Azul, um atelier de ocupação de tempos livres para crianças e jovens com autismo

POR: André Mussamo

Maria da Luz escapou por um tris a um linchamento certo por ter nascido albina. É mucubal em 50%, como ela mesma se considera, nasceu no Virei província do Namibe e em consequência das crenças a sua tribo não admitia o albinismo. Foi salva por um providencial “esquema” montado pela sua progenitora e tão logo se abriu a primeira oportunidade em 1975 teve de seguir para Portugal. Quis a ironia do destino que o seu segundo rebento, a quem deu o nome de Romão nos seus primeiros anos de vida começasse a apresentar alguns “sintomas estranhos”. O coração de mãe impeliu- a a procurar respostas e solução para o problema do filho mas nem uma nem outra coisa. Frustrada e contrariada pelo andar da carruagem, teve de abandonar uma bem-sucedida vida profissional e um matrimónio em terras lusas quando ouviu pela primeira vez o médico dizer que desconfiava que seu pequeno Romão sofria de autismo.

Partiu para as terras de Sua Majestade Isabel II e foi lá que, com todas as letras, os médicos disseram-lhe que o Romão sofria de autismo severo. Neste dia “faltou o chão”, conta. Mas puxou das últimas forças, ergueu a cabeça e partiu para a luta. Aprendeu sobre o autismo e hoje pode gabar-se de ter o Romão feito um homem, salvaguardadas as pequenas especificidades decorrentes do autismo que infelizmente poucos entendem no mundo. Pelo que passou esta crente de que outras mães passaram ou estarão passando por isso a decidiu criar o Coração Azul, “um projecto social privado de cariz social, vocacionado para desenvolver actividades ludo-terapêuticas com crianças e jovens no espectro do autismo, apoiando em paralelo famílias e cuidadores”.

Depois do muito que aprendeu ao lidar com o problema a bem do seu filho, Maria da Luz regressou ao solo pátrio e aqui, com ajuda de alguns poucos “batalhou” para fazer ouvir a causa do autismo e estender a mão a muitos que, passando por vicissitudes similares, não terão com certeza alguma tribuna para expor os seus dilemas. Portanto, a sua iniciativa busca fazer com que a sociedade angolana conheça o autismo, desmistificando crenças erróneas e medos, contribuir para o desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos afectados através de actividades ludo-terapêuticas e promover eventos que visam apoiar famílias e cuidadores. Coração Azul, atelier de ocupação de tempos livres para crianças e jovens com autismo, está alojada no limiar entre a Luanda urbana e o musseque Catambor, num espaço modesto que por enquanto acolhe 15 crianças e adolescentes. Olhando para o número parece uma gota de água no oceano, mas Maria da Luz diz que mais vale “ajudar poucos e bem do que muitos e mal”. Diz que o propósito é colocar o problema na agenda pública da sociedade angolana a ver se mais vontades se juntam e de uma vez o autismo seja colocado nas prioridades do serviço público.

Crenças erróneas

Da Luz acredita que o primeiro passo na luta em prol do autismo é a desmistificação das “crenças erróneas”. Insiste que o mal deve ser considerado transtorno global de desenvolvimento infantil que se manifesta até aos três anos de idade e que se prolonga por toda a vida e não como uma doença como é encarado na maioria das sociedades. Na África, parcela global rica em crenças, o cenário não é animador, porquanto muitas das crenças são verdadeiros multiplicadores de efeitos maléficos para o problema. Por cá, sabese que os portadores do distúrbio são “guardados” no interior dos lares de todas as classes sociais com posses e/ou levados aos quimbandas e pastores acusados de estar apossados de “espíritos demoníacos”. Em certas tribos dão-lhes o nome de “sereias” e, portanto, o tratamento é exclusivamente tradicional. Dona Marcela, avó de um neto aparentemente afectado pelo distúrbio, confessa que há 3 anos que vive um dilema.

“De início, o bebé chorava muito, encolhia os pés e mãos e parecia não querer ver a luz do Sol. Fomos a muitos hospitais pediátricos e alguns recomendaram reabilitação física e fisioterapia. Fizemos isso, incluindo em centros especializados e nada. Graças a ter levado a criança ao município do Lucala (provincia do Cuanza-Norte), hoje já anda e fala ‘mama, papá, dá’. O problema agora é que não consegue falar quando quer fazer necessidades. Faz tudo na fralda”, descreveu a cidadã, que confessa não ter dúvidas que seja “obra dos mistérios insondaveis da tradição ou almas do outro mundo”. Um especialista que prefere o anonimato e falando sobre hipótese considera que a ser verdade o depoimento da avó, indicia a existência de autismo, mas é necessário um exame cuidado e multi-disciplinar para um diagnóstico conclusivo. Dona Maria da Luz diz o mesmo e acredita que, tal como esta avó existem muitas outras que se deixam levar por crenças erróneas “por défice de informação e conhecimento”. O momento urge, e a sociedade angolana deve ser chamada para se envolver nesta causa. Apesar de ainda ser quase desconhecida e existir como um tabú, muitos vivem com a deficiência. Para quem tem um familiar nessa situação, a falta de diagnóstico e o estigma são as primeiras dificuldades a enfrentar. Especialistas alertam que não há tratamento.

Números preocupantes

Apesar de não existirem dados oficiais sobre o número de autistas, estão inscritas na Associação Angolana de Apoio a Pessoas Autistas e Portadoras de Transtornos Global de Desenvolvimento ‘APEGADA’, mais de 600 famílias. De acorda com múltiplas fontes conhecedoras do problema, o número de crianças autistas “é preocupante” pelo que a criação de um ou mais centros especializados começa a ser uma necessidade “urgente”. Por não ser uma doença e o forte, para a sua mitigação, estar assente em terapias que requerem muita paciência e tempo, a existência de múltiplos centros especializados também começa a ser uma necessidade.

2 Abril: dia mundial do autismo

Nesta segunda-feira, (2 de Abril), o mundo assinala mais uma efeméride declarada pelas Nações Unidas. É que a maior tribuna política mundial decidiu instituir o 2 de Abril como Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo. A Organização Mundial da Saúde, OMS, calcula que o autismo afecta uma em cada 160 crianças no mundo. A condição chamada de transtorno do espectro autista geralmente tem início na infância e persiste durante a adolescência e vida adulta. A agência da ONU diz que várias pesquisas científicas sugerem a existência de muitos factores que podem deixar a criança mais propensa ao autismo, incluindo questões ambientais e genéticas. A ONU pede a participação de todos na mudança de atitude em relação às pessoas com autismo impondo um reconhecimento dos seus direitos, como cidadãos, para que possam tomar as decisões de acordo com sua própria vontade ou preferência.

O ano passado, o Secretario Geral da ONU recomendava para que “todos renovassem a promessa de não deixar ninguém para trás e assegurar que todos possam contribuir como membros de sociedades activas e prósperas como estipulado pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências deixa claro que a capacidade jurídica e a igualdade perante à lei são direitos inerentes que as pessoas com autismo desfrutam em igualdade de condições com outros membros da sociedade. O esforço está direccionado no sentido de unir forças para criar as melhores condições possíveis para que as pessoas com autismo possam fazer sua própria contribuição para um futuro mais justo e sustentável.