Tribunal da Relação de Lisboa remete processo de Manuel Vicente a Angola

Tribunal da Relação de Lisboa remete processo de Manuel Vicente a Angola

Solução há muito reivindicada pelas autoridades angolanas, até ontem, Quinta-feira, foi objecto de uma continuada recusa pela justiça portuguesa.

O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu ontem remeter o processo judicial em que o ex-vice-presidente angolano, Manuel Vicente, é suspeito de corrupção activa e lavagem de dinheiro, no caso Fizz. No acórdão da 9ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa foi julgado procedente o recurso interposto por Manuel Domingos Vicente, e defere o pedido de delegação a República de Angola para continuação do processo. Trata-se de uma solução há muito reivindicada pelas autoridades judiciais angolanas, que, porém, até agora a justiça portuguesa sempre recusou, alegando não estar garantido, para este caso, aquilo que a lei designa como “boa administração da justiça”, uma vez que “Luanda não dá garantias de vir a julgar o antigo governante, já que, em seu entender, gozará de imunidade pelo menos durante cinco anos, por via do cargo que desempenhou até 2017.

“A vigência de uma lei de amnistia não é, só por si, motivo de risco de boa administração da justiça”, observam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, contrariando, assim, quer o entendimento do Ministério Público, quer o dos seus colegas de primeira instância sobre a matéria. Segundo o acórdão dos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, a amnistia é uma figura jurídica que faz parte do sistema penal angolano, como do sistema penal português e dos sistemas de justiça modernos. “Temos de aceitar que as leis de amnistia são mecanismos normais nos sistemas jurídicos como o português e o angolano, nos sistemas de direito continentais e até na generalidade dos sistemas jurídicos modernos, e a sua aplicação faz parte do funcionamento normal desses sistemas”, escrevem os juízes Cláudio Ximenes e Almeida Cabral. Para os magistrados, a boa administração da justiça não se identifica sempre e necessariamente com a condenação e o cumprimento da pena.

Comunicado da equipa de advogados

A equipa de advogados que representa o ex-vice-presidente Manuel Vicente manifestou publicamente a sua satisfação por a decisão reconhecer razão ao recurso apresentado e ao que sempre defendeu. Em comunicado, considerou tratar-se de uma solução juridicamente adequada que pode contribuir para afastar qualquer clima ou ideia de desconfiança ou estigmatização entre sistemas jurídicos de Estados soberanos e cooperantes. “Neste momento, queremos também reiterar que as questões relacionadas com os mecanismos de cooperação entre Estados e com as imunidades não constituem prerrogativas ou privilégios pessoais. São sim questões de Direito e de Estado às quais um ex-vice-chefe de Estado e actual deputado está naturalmente vinculado”, acentua a nota enviada ontem a OPAÍS. “É certo que continuamos convictos e empenhados na continuação da demonstração, no momento e pelos meios e no lugar próprios, de que o Engenheiro Manuel Vicente nada tem a ver com os alegados factos que quiseram imputar-lhe”, conclui.

PGR de Angola e de Portugal têm acordos de cooperação firmados

Desde 2010, Angola tem um acordo de cooperação no domínio judicial com Portugal – assinado à luz dos laços de identidade histórica da comunidade jurídico-judiciária que une ambas as instituições, e tendo presente a necessidade permanente de reforçar e consolidar as instituições do Estado de Direito Democrático, e de melhorar a qualidade da justiça disponibilizada aos cidadãos de ambos os países. Baseados nos princípios da boa fé, do respeito e benefícios mútuos, da soberania nacional, da igualdade e reciprocidade, no respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, os dois órgãos decidiram celebrar um acordo destinado a desenvolver os princípios que norteiam a cooperação bilateral entre as partes, designadamente no capítulo da troca de experiências e de informações nos domínios das respectivas atribuições. Segundo o acordo, a cooperação e o intercâmbio devem incidir em áreas que relevem da especificidade das estruturas e da actividade da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público, incluído os respectivos conselhos superiores, nomeadamente o aprofundamento da experiência profissional dos respectivos quadros e a organização dos serviços. Contactada por este jornal, a Procuradoria Geral da República (PGR) não reagiu a esta decisão da justiça portuguesa, pelo facto de não ter ainda em posse uma notificação oficial.

O caso “Fizz”

O julgamento da “operação Fizz”, na origem da maior crise diplomática dos últimos tempos entre Angola e Portugal, teve início dia 22 de Janeiro deste ano. No mesmo dia, embora Manuel Vicente estivesse ausente da sessão, a equipa de advogados do ex-vice-presidente interpôs um pedido de separação do processo, o que foi aceite pelo Tribunal. Dia 8 de Maio, o presidente do Banco Privado Atlântico (BPA) e ex-vice-presidente do BCP falava, na qualidade de testemunha, no julgamento do caso Operação Fizz, em que o ex-procurador português Orlando Figueira está acusado de corrupção passiva e outros crimes relacionados com o arquivamento de inquéritos-crime em que o suspeito era Manuel Vicente, o antigo presidente da Sonangol e antigo vice-presidente de Angola. Na inquirição, Carlos Silva continuou a negar que tivesse oferecido emprego a Orlando Figueira para ir trabalhar no BPA Angola, contrariando declarações de Orlando Figueira que o apontam como responsável pelo seu contrato de trabalho, jamais cumprido. O banqueiro negou qualquer participação na ideia de contratar Orlando Figueira, com um pagamento antecipado de 130 mil euros, observando ainda que nem Manuel Vicente, nem o engenheiro Armindo Pires (arguido e velho amigo de Manuel Vicente) alguma vez lhe falaram de dinheiros destinados ao ex-procurador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).

Cronologia nas relações entre Angola e Portugal devido ao caso “Fizz”

O caso Manuel Vicente, arrolado no processo “Fizz”, sob acusação de “Corrupção activa”, contribuiu para o “azedar” das relações entre Portugal e Angola.

26 de Setembro de 2017 – Na sua tomada de posse como Presidente da República, João Lourenço não incluiu Portugal na lista dos países com os quais contava cooperar no âmbito das relações internacionais, mesmo com a presença, na cerimónia, em Luanda, do seu homólogo luso, Marcelo Rebelo de Sousa.

29 Novembro de 2017 – O ministro das Relações Exteriores, Manuel Augusto, avisa que enquanto o caso que envolve a justiça portuguesa e Manuel Vicente não tiver um desfecho, Angola “não se moverá nas acções de cooperação com Portugal”.

30 Novembro de 2017 – O chefe da Diplomacia angolana advoga a transferência para a Justiça do país do processo que envolve Manuel Vicente e garantiu que Angola sobreviverá a uma crise de relações com Portugal.

8 Janeiro de 2018 – O Presidente João Lourenço classifica a atitude da Justiça portuguesa como “uma ofensa” para Angola e avisa que as relações com Portugal dependeriam da resolução em torno do caso envolvendo o ex-vice-presidente, Manuel Vicente.

23 de Abril de 2018 – O Presidente da República, João Lourenço, exonerou o embaixador angolano em Portugal, Marcos Barrica, porém, até ao momento não foi nomeado um outro em sua substituição.

25 de Abril de 2018 – No dia da Revolução dos Cravos, em Portugal, notou-se a ausência de uma mensagem de felicitações do Presidente angolano.

08 de Maio de 2018 – É anunciada a visita a Angola do ministro da Defesa Nacional de Portugal, Azeredo Lopes, na próxima semana, no âmbito dos programas de cooperação militar entre os dois países.

10 de Maio de 2018 – É anunciada a transferência do processo judiciário que envolve o ex-vice-presidente Manuel Vicente para as autoridades angolanas.