Boa praia em Luanda só a dinheiro ou com GPS

Boa praia em Luanda só a dinheiro ou com GPS

No âmbito das comemorações do Dia Mundial do Ambiente, OPAÍS foi constatar como vai fazendo parte do passado o tempo em que Luanda era a rainha de boas praias. Hoje entre as Barras do Cuanza e do Dande, encontrar um bom local para um agradável mergulho requerer paciência ou pagar uma boa renda

POR: André Mussamo

Muros de betão, vedações de arame farpado, portões hermeticamente fechados com cadeados e empresas de segurança tomando conta do nada, é a imagem que se repete em locais que até há pouco tempo eram de todos, ou seja “praias livres e abertas a todos os luandenses e seus visitantes”. Por exemplo, em toda a extensão da conhecida zona balneária do Morro dos Veados os seguranças nem acederam ao nosso pedido para chegarmos à beira-mar, para tirarmos apenas algumas fotografias.

Segundo eles, uma alma viva no interior do perímetro vedado resultaria no seu despedimento imediato. Interrogados sobre o motivo de tanta dureza, um deles retorquiu: “o mano sabe que este país tem dono. Só eles podem colocar alguém aqui dentro”. Tentamos outra manobra, interrogando- lhes como foi possível alguns outros à nossa vista, lá mais ao fundo, conseguiram transpor o cercado, ao que sem hesitar, o segurança respondeu: aqueles entraram pelo mar. Vieram de canoa e estão a procura de mabanga. São os poucos que toleramos aqui dentro. O homem da protecção foi incapaz de revelar a proveniência da “ordem”, e simplesmente reiterou que o seu trabalho é impedir o acesso de quem quer que seja ao perímetro, 24 horas ao dia.

Tradição ameaçada

Mussulo ou Ilha de Luanda, para só citar estes mais próximos, eram lugares de eleição para muita gente, que sufocada pelo sol abrasador da época quente na capital do país, procurava arejar à brisa das praias. Elas são uma das principais atracções turísticas da cidade de Luanda, a par das praias Amélia, Cacuaco e Quilómetros, apontadas como as mais apetecidas pelos banhistas, quando o assunto é desfrutar das belas águas do Atlântico. Todavia, aos poucos, porções atrás de porções, as então “praias preferidas” foram, a olhos vistos, sendo privatizadas. Hoje, encontrar um lugar à beira mar para um mergulho ou um retiro, começa a ser uma miragem. Aos poucos, parece que as praias vão com tempo. Lá onde antes era possível fazer um bom sarau de diversão, agora estão placas de proibição por se terem tornado locais inapropriados, ou para não variar, vedadas e protegidas por homens armados, aquilo que antes eram espaços públicos e para usufruto de todos. Algumas praias com características para a prática de desportos náuticos, incluindo mergulhos e banhos de sol, são as mais cobiçadas, sendo o perímetro entre a Barra do Cuanza e a Ilha do Cabo que mais regista o flagelo da privatização, onde sobram umas poucas sem as mínimas condições, fazendo prever que, em breve, só irá à praia quem tiver dinheiro “para gastar”.

Obras e mais obras ao longo das praias, aos poucos, vão retirando o velho prazer de muito boa gente fazer lazer à beira-mar, daí que, qual uma moda nova, desde há alguns anos, a construção de residências à beira-mar é uma realidade palpitante, um investimento maioritariamente pertencente a indivíduos considerados de alta renda, que não se predispuseram a falar à nossa reportagem. Todas as tentativas para chegarmos aos proprietários durante a realização desta reportagem resumiram- se apenas em contactos com os seguranças e ou empregados domésticos que sempre atenderam-nos sem ousar abrir os portões alegando que cumpriam “orientações dos proprietários”. No Morro dos Veados não são as casas à beira-mar que impedem os banhistas e ameaçam a vida animal, mas as vedações. Até há alguns anos, considerada a praia mais turística da capital, hoje está às moscas, após ter sido vedada a pretexto da execução de um mega- projecto de que se pode apenas vislumbrar pequenas obras em alvenaria e um gigantesco autodoor a identificar o dono da empreitada e respectiva maquete.

Segundo um transeunte abordado no perímetro em referência, a implementação de obras de grande envergadura vizinhas às áreas balneares contribui para a extinção de locais de lazer à beira-mar e a destruição da vida animal. Uma realidade que acabou com o sustento de muitas dezenas de famílias que sobreviviam do turismo de praia, através da venda de diverso pescado, gastronomia típica, artesanato. Saliente-se que ocupação desordenada da zona costeira de Luanda e a falta de harmonização nas edificações construídas periga a sua biodiversidade e causa danos ambientais irreversíveis, segundo especialistas na matéria. A zona costeira angolana compreende uma faixa estendida até 1.650 Km voltados para o oceano Atlântico, às localidades costeiras proporcionando condições para uma verdadeira industria azul.

Por estas e outras razões, a costa requer atenções especiais, tanto pela diversidade de ecossistemas, habitats e a sua rica biodiversidade (incluindo aves, peixes, mamíferos e outras espécies) que possui, face a concentração da população. Em Luanda, as maiores extensões de mangais encontram-se na Barra do Kwanza, nos últimos tempos uma zona de intenso movimento humano, e igualmente alvo de uma galopante ocupação como algumas imagens incluídas nesta reportagem ilustram. “Tudo isso tem impacto negativo sobre a biodiversidade, porque as zonas costeiras são consideradas áreas importantes para aves migratórias, que as utilizam para a reprodução e o repouso”, afirmou um ambientalista contactado.

Ilha de Luanda com o mesmo cenário

Apesar da fama da praia da Ilha de Luanda, as inconformidades verificadas a Sul parecem encontrar terreno fértil naquela língua de terra luandina. Também ali encontram-se, além de enormes quantidades de resíduos sólidos, uma galopante ocupação dos espaços balneários. Numa constatação recente, a nossa reportagem confirmou denúncias segundo as quais a “privatização de praias soma e segue, e sem impedimento algum”. Aliás, quase já não se tem acesso à totalidade da costa (Baía de Luanda) até ao Ponto Final. No lado esquerdo, rumo ao ponto final (contra costa), os proprietários dos restaurantes procedem à vedação de toda a área circum-marinha defronte aos respectivos estabelecimentos para uso privado dos clientes. Segundo empregados nesses locais, a vedação não consistui propriamente “uma privatização das coutadas balneárias”, mas a criação de condições confortáveis para os clientes das casas desfrutarem de “praia confortável e segura”. Mesmo assim, os seguranças impediram a nossa equipa de fotografar, apesar de nos terem permitido transpor as delimitações. Uma utente, sob anonimato, desabafou à nossa equipa que a moda do Mussulo agora foi transferida para a secular ilha de Luanda, roubando aos ilhéus a sua umbilical ligação ao mar. Para a nossa entrevistada, esta é a principal razão pela qual muitos nativos foram desterrados para bem longe do mar permitindo a ocupação velada promovida por magnatas e comerciantes oportunistas.

Petrangol e Cacuaco menos afectadas

Com fraca oferta para zonas balneares, a região da Petrangol e rumo a Cacuaco, segundo constatamos, parece ressentir menos do fenómeno da privatização. O problema de Cacuaco refere-se à imundice que assalta as praias. Um morador classificou-as de “autênticas lixeiras onde mergulham os menos avisados”. Para este cidadão, em nome dos moradores e das autoridades de Cacuaco, deviam-se interditar as praias locais que representam um “grande atentado à saúde publica”. “Andamos a perguntar porque os nossos hospitais estão sempre cheios de doentes? Basta vir a Cacuaco e ver de onde saem as doenças e como são transferidas para a espécie humana”, referiu. Uma fonte da Administração Municipal de Cacuaco revelou a OPAÍS que há muito as autoridades locais se batem pela interdição das praias locais. “Entre a ordem e o cumprimento da mesma, há o factor consciência dos cidadãos”, referiu, atirando todas as responsabilidades a pessoas teimosas e aventureiras que não gostam da ordem e harmonia.

Taxa na Barra do Dande

No Dande, província do Bengo, uma localidade com óptimas praias, a novidade encontrada refere-se ao pagamento de taxas para aceder às praias. Jovens locais instituem cancelas e cobram pela cilindrada dos veículos ou o número de passageiros. Nós que fazíamo-nos transportar num veículo ligeiro com 5 lugares, pagaríamos 500 kz, mas a nossa condição de repórteres foi suficiente para que fossemos isentados. Em dois desses controlos podemos constatar que os protagonistas envergam coletes reflectores sem inscrição alguma, sendo que o recibo que emitem trás em epígrafe “Administração Municipal do Dande”. Todavia, perguntados quanto ao destino dos valores arrecadados, alegaram que os mesmos servem para garantir a limpeza das praias e a segurança dos utentes. Foi possível confrontar com as autoridades locais a instituição desta taxa, pelo que em próximas oportunidades OPAÍS trará à estampa o posicionamento das autoridades locais.

Quem licencia?

Esta é a questão que parece ficar sem resposta. Por si só, as unidades confrontadas pela nossa reportagem não reclamam a titularidade dos espaços, porém alegam que os condicionam de maneiras a “proporcionarem melhores condições de usufruto aos seus clientes”. Do governo da província de Luanda, até a fecho da presente edição, permanecemos aguardando por alguma reacção, enquanto do Ministério do Ambiente também recebemos um “sacudir do capote”. O director nacional da Biodiversidade daquele ministério afirmou ao telefone que nesta problematica a responsabilidade do seu sector limita-se a garantir a sobrevivência das espécies animais e vegetais que têm a costa marítima como habitat. “Pensamos que o licenciamento não deverá ser uma matéria da nossa tutela. A nossa intervenção tem sido garantir a conciliação da componente turística à sobrevivência das espécies”. Para aquela autoridade, as espécies, por instinto natural, sabem distinguir que zonas servem melhor os seus interesses e por si mesmas evitam aquelas com muita frequência humana”.

Revelou que em muitos países, para prevenir o conflito entre a actividade humana e a sobrevivência das espécies animais, a solução tem passado por estudos do impacto ambiental. “Estes estudos não servem apenas para proibir. Em alguns casos até, acabam por sugerir formas harmónicas de partilha entre a perspectiva de utilização pra fins turísticos e a garantia da sobrevivência das espécies. Os investidores, geralmente, receiam os estudos de impacto ambiental (pelos seus custos), e que deviam ser uma acção obrigatória para prevenir tais conflitos”. O responsável descartou alguma intervenção do seu sector na outorga de espaços para fins turísticos, presumindo desde logo que esta tarefa esteja sob alçada das administrações locais ou governos das respectivas províncias. O nosso esforço para determinar quem deve licenciar tais empreendimentos foi extensivo às administrações municipais e a estruturas da Capitania Marítima, que porém não teve sucesso.