Autismo desmembra e isola famílias

Autismo desmembra e isola famílias

O autismo é um distúrbio neurológico comum, porém, quase desconhecido ou “ignorado” pela sociedade, o que leva a um diagnóstico difícil de lidar para qualquer família. Apesar de a realidade do dia-a-dia ser muito dura, como descreve, ao jornal OPAÍS, quem convive com pessoas autistas, pessoas portadoras de síndrome de Down, com paralisia cerebral e outros portadores de transtornos globais do desenvolvimento, há quem leve uma vida normal

POR: Iracelma Kaliengue

A falta de diagnóstico em tempo oportuno nas unidades hospitalares do país e o estigma são alguns dos principais constrangimentos a que as pessoas diagnosticadas com distúrbio neurológico e os seus familiares enfrentam todos os dias. “Ser autista em Angola é ser culpado de ter nascido com distúrbio neurológico. É ser apontado como pessoa especial e ser afastado da sociedade. É não gozar dos seus direitos. É ser fi lho de uma mãe sem emprego e sem oportunidades”, declarou Maria da Conceição, de 42, mãe de Júlia da Conceição, de 19 anos, diagnosticada com autismo aos dois anos de idade, isto é, há 17 anos, precisamente. Maria da Conceição dedica-se exclusivamente a cuidar sozinha da sua filha, 24 horas por dia. Por causa disso, confidenciou, perdeu o emprego, o marido e o convívio com boa parte dos familiares e amigos.

Foi sob alerta de um amiga que percebeu que a sua filha, aos dois anos de idade, tinha um olhar distante enquanto brincava com outras crianças e que reagia de forma anormal quando ouvia muito barulho. Colocava as mãos nas orelhas. Três anos depois, face ao aumento das crises, o marido, pai da criança, não conseguiu lidar com a situação e saiu de casa, deixando- as entregue à sua sorte, alegando que se tratava de um problema de foro tradicional. “Ele também não entendia por que razão a nossa filha tinha comportamentos estranhos. Passava a noite a gritar, atirava as coisas ao chão como se estivesse com raiva,  não respondia a nada e nem interagia com as pessoas. Certo dia, disse- me simplesmente que a família dele achava que era um problema tradicional e saiu de casa”, disse. Na altura com 28 anos, Maria da Conceição largou o emprego para cuidar da filha. Foi à busca de solução para aquilo que acreditava ser uma doença como outra qualquer e que tivesse cura. Engano seu. Dos médicos recebeu uma medicação para fazê-la dormir e ficar menos energética ao longo do dia, o que não surtiu efeitos. Com o passar do tempo, aprendeu a lidar com a filha, com o preconceito e até mesmo os insultos de familiares e amigos. Não viu alternativa senão afastar-se de algumas pessoas e isolar a filha do resto do mundo.

Sete anos depois, o diagnóstico…

Já António Teixeira disse, que o seu filho só foi diagnosticado autismo aos sete anos de idade, após fazer vários exames e ter de lidar com a indiferença de médicos de diversas especialidades, em Angola. “Consultámos vários neurologistas e pediatras e mandavam-nos fazer exames só para nos descartarem e evitar que voltássemos a contactá-los”, recordou. Com semblante de tristeza, contou que enfrentou situações muito dolorosas. “O meu filho gritava. Tinha crises de choro e risos. Era muito hiperactivo e nós não sabíamos o que fazer”. Entre as várias barreiras sociais que tiveram de enfrentar estão os insultos dos vizinhos que não sabiam do problema de saúde de que padecia um dos seres humanos que mais ama. “Diziam que eu tinha um maluco em casa”, frisou. No seio familiar, onde o casal e o filho deveriam receber o afecto e apoio necessários, também foram vítimas de estigma e preconceito. “Quando nos convidassem para uma festa, havia uma lista e deixavam- no sempre de parte”. Crentes no poder de Deus propalado por bispos, padres, pastores e diáconos, António Teixeira e a sua mulher procuraram tranquilidade na “casa do Senhor”, de onde mais se ouvem tais pregações. Nem neste local encontraram sossego, pois, diziam que o seu filho “tinha espíritos malignos”.

Busca de respostas no exterior do país

Por falta de respostas adequadas por parte de especialistas de distintas unidades hospitalares do país, António Teixeira não teve outra solução senão vender os seus bens materiais (casa, carro, entre outros) para se deslocar ao Brasil atrás de uma solução. Entre outras histórias, António Teixeira contou que recebeu propostas para que desse o filho para a adopção, por causa da falta de condições para cuidar dele em Angola. Actualmente, com maior capacidade de lidar com essa situação, o nosso interlocutor considera que tais momentos difíceis tornaram- se “desafios” e testes de coragem para a sua família. Acabou por conferir maior solidez ao seu casamento e força para continuar a lutar para proporcionar melhores condições de vida ao filho e para quem está na mesma condição. À semelhança dele, Manuela Fernando também encontrou solução no exterior do país. Contou que, diferente de outras crianças cujos sinais da doença se manifestaram após os dois anos, no Enzo, o seu filho, ocorreu mais cedo. “Desde cedo que ele apresentava sinais preocupantes.

Até ao primeiro ano não sentava nem falava, mas gritava, chorava e sorria ao mesmo tempo”, detalhou, acrescentando que ficava preocupada e que era ignorada pela família. Só aos três anos de idade é que o comportamento do Enzo se tornou mais evidente e a preocupação estendeu- se a todos os membros da família. O pequeno foi expulso da creche que frequentava, alegadamente porque não conseguia conviver com as outras crianças. Numa viagem de férias a Portugal levou o filho a uma consulta, na qual, em apenas cinco minutos, o médico conseguiu identificar algo que passou despercebido durante anos aos seus colegas que trabalham em Angola. “Quando chegámos ao consultório, ele começou a chorar e batia a cabeça sobre o meu ombro. Essa atitude ajudou no diagnóstico”, recordou. Na altura, a nossa interlocutora também não sabia do que se tratava, nem sequer tinha ouvido falar sobre autismo. Recordou que, de regresso a casa, aos prantos, fez uma pesquisa na Internet sobre o assunto. “Encontrei muita inflamação e a mais dura foi saber que a doença não tinha cura. Chorei muito. Mas o apoio da família ajudou a manter-me forte”, declarou.

Preços em alta

Já de regresso a Angola, Manuela Fernando procurou por ajuda a um centro de terapia, onde pagava mensalmente mais de 200 dólares, na época. “Gastei muito dinheiro e tive poucos resultados satisfatórios. O Enzo é um autista clássico, com grandes problemas de comportamento”, frisou. Insatisfeita, recorreu a outro centro onde desembolsava mensalmente 140 mil kwanzas, mas por causa da crise, o preço disparou para 240 mil kwanzas. Não teve outra saída senão desistir e hoje frequenta o único centro do país que faz acompanhamento gratuito às crianças, localizado no Kifica, município de Talatona, em Luanda.

Diagnostico impulsionador

Ana Domingos, a directora do único centro do país que faz acompanhamento gratuito a crianças autistas, a APEGADA, situada no Kifica, município de Talatona, associou-se a este grupo porque sentia necessidade de conviver com outras pessoas que enfrentam os mesmos dilemas. “Foi um choque violento receber o diagnóstico sobre a doença que a minha filha tinha e o pior foi saber que não tinha cura, sem nunca sequer ter ouvido falar da doença”. Reconhece, no entanto, que os primeiros anos foram muitos difíceis e que perderam algum tempo por desconhecerem como lidar com a situação.

Hoje, descreve-se como sendo uma “mãe tranquila e feliz”, empenhada em ajudar quem precise, por constatar que há inúmeras famílias que não sabem como lidar com crianças distúrbio neurológico. Mãe de uma jovem com autismo, Ana explica que, observando o comportamento dela, acatou os conselhos de pessoas que lhe são próxima e formou-se numa área que lhe permite ter domínio da situação. Fez o curso médio de Ciências da Educação e licenciou-se em Psicologia Clínica. “Há males que vêm por bem. Antes de saber que a minha filha era autista era doméstica. Hoje sou for- mada em Psicologia Clínica e trabalho a ajudar pessoas que estão na condição em que estive um dia”, disse orgulhosa. Disse que “foi durante a formação que fiquei a saber que a minha filha tem o transtorno autista, e que precisa de terapia para fala, ocupacional e fui estudando porque não tinha condição para pagar os tratamentos em Angola e hoje eu consigo trabalhar com a minha filha e consigo ver a evolução dela” Actualmente, conta que a filha interage, fala e até faz bolos em casa, lê e escreve devido ao acompanhamento que tem tido em casa e no centro onde Ana é voluntária para ajudar outras mães e crianças.