Luna e as vacas retornadas

Luna e as vacas retornadas

29 de Junho de 2018, Sexta-feira, cidade de Seul, manhã de sol e calor. O autocarro com uma excursão de jornalistas de várias nacionalidades segue em direcção a Paju. Mais ou menos trinta profissionais, gente bem-disposta e, obviamente, muito curiosa. Entre conversas triviais, captação de imagens das paisagens ao longo do percurso, gargalhadas e roncos, pois há quem não resista a tirar uma soneca enquanto viaja, pairava a expectativa comum de conhecer a realidade na fronteira entre as duas Coreias.

POR: Paulo Gomes

Adrenalina em alta. Nisto, a meio do percurso, a guia turística anuncia: “tenho aqui ao meu lado uma dissidente norte-coreana”. Imaginem o frenesim gerado por aquela notícia. Para os jornalistas, se não era ainda o bolo tão desejado, estava ali um ingrediente que poderia fazer alguma diferença. Vai daí, de imediato, uma improvisada colectiva de imprensa para sugar o máximo de uma história particular que poderia trazer evidências sobre uma realidade tendencialmente diabolizada ou contada a coberto de uma propaganda hostil ao regime norte- coreano. Luna (nome fi ctício) é uma mulher muito compenetrada. Fala pausadamente e procura as palavras certas enquanto descreve as peripécias da sua fuga para o lado Sul. Prestou serviço militar durante dez anos, foi instrutora de tiro, provavelmente daí o controlo emocional num cenário de alguma pressão. A narrativa convence, um bom roteiro para um filme de acção. A negociação com os “coiotes”, a travessia arriscada pelo rio Duman até alcançar o território chinês, a viagem a Tailândia e, finalmente, a chegada a Seul. Ainda, a angústia por ter deixado o filho sem amparo e a primeira comunicação com as suas irmãs residentes em Pyongyang, a quem sugeriu que solicitassem às autoridades locais a emissão do seu boletim de óbito, pois sabia que tinha feito um caminho sem volta. É uma sucessão de factos de cortar a respiração! Muitos de nós esperavam ouvir referências críticas sobre a Coreia do Norte. Luna surpreendeu- nos a todos. “Não pensem que há pessoas a morrer de fome no meu país. Eu acredito que em cinco anos a Coreia do Norte será um país diferente”. Também teceu elogios aos esforços diplomáticos do líder supremo Kim Jong-un para a paz na península coreana. Foi como um soco no estômago para os que esperavam ouvi-la desancar sobre o regime norte-coreano. Pelo contrário, expressou amor aos seus concidadãos e a sua terra. É grata por tudo o que a Coreia do Sul lhe tem oferecido de oportunidades e acredita na reunificação. Atónito mas, confesso, muito agradado com aquela postura, rememorei a trajectória de um outro coreano. Chama-se Chung Ju-yung. Nasceu em 1915 na província de Kangwon, localizada na Coreia do Norte. Fez-se empresário de sucesso na Coreia do Sul. Uma das grandes referências da sua veia empreendedora é um produto muito consumido em 193 países, incluindo Angola. As viaturas Hyundai. Ele é o criador desta marca que hoje os seus herdeiros continuam a alavancar. Chung Ju-yung, não construiu o seu império empresarial recorrendo ao baú da família. Teve que trabalhar muito. Foi pedreiro, vendedor de madeira, “faz-tudo” numa fábrica de xarope, entregador de arroz e só em 1975 lançou para o mercado o Hyundai Pony, primeiro modelo feito sem o suporte da Ford. Mas, há uma passagem da sua vida que o marcou para sempre. A sua viagem de comboio para se estabelecer em Seul. Chung vendeu clandestinamente uma vaca que pertencia ao seu pai e usou o dinheiro para comprar a passagem. Em 1998, enquanto jogava a sua influência para a normalização das relações entre as duas Coreias, Chung, o senhor Hyundai, resolveu devolver simbolicamente a vaca que havia subtraído ao seu pai e ao território onde nasceu, Kangwon. Não se propunha praticar este acto por mera generosidade. Mas, por retribuição e amor à sua terra. E o fez com classe, atravessando a fronteira de Sul para Norte seguido por uma coluna de camiões transportando mil e uma vacas. A do seu pai e mais mil para o povo norte-coreano. Denominou-as “vacas de unificação”. Um sonho que não viu realizado até ao seu desaparecimento físico em 2001, mas, pelos últimos desenvolvimentos, deve estar perto de ser conseguido. Com amor será possível!