“Heróis” de guerra “combatem” à noite para salvar o pão na Caixa das FAA

“Heróis” de guerra “combatem” à noite para salvar o pão na Caixa das FAA

Tenentes, capitãs, majores e tenentes-coronéis provenientes de várias partes do país fizeram da rua da Caixa de Segurança Social das Forças Armadas Angolanas (FAA), em Luanda, um verdadeiro dormitório, com a finalidade de ver o seu nome a constar na lista pensionistas. Há quem esteja sem tomar banho há uma semana

Texto de: Milton Manaça

Antes de falar ao OPAÍS, Isaac Kangojo preferiu mostrar as marcas de projécteis espalhadas por várias partes do corpo, frutos das lutas em campos de guerra em que esteve envolvido, com destaque para a batalha do Cuito Cuanavale, um dos maiores confrontos militares da guerra angolana.

Por volta das 22h, a equipa de reportagem de OPAÍS encontrou este tenente desmobilizado das FAA a arrumar os papelões onde passaria mais uma noite, das três semanas em que se encontra na capital do país, proveniente da província do Huambo, para fazer constar o seu nome na lista dos reformados da Caixa Social das FAA.

Não sabia quanto tempo ficaria em Luanda, por isso, trouxe mantimentos do Huambo. “Mas os quilos de fuba, feijão e lombis que trouxe acabaram, e até agora não consegui fazer a entrega dos documentos”, lamentava o tenente Isaac, enquanto endireitava a sua “cama”.

Próximo de si estava o tenentecoronel Manuel Firmino, que depois de servir as FAA por 38 anos foi desmobilizado em 2014. Residente na Caop A, no município de Viana, disse não ter condições para “idas e vindas” para fazer a prova de vida. Por esta razão, decidiu também fazer morada nos passeios da Caixa Social.

A cabeceira da sua cama era de pedra e ao lado havia uma mochila onde tudo o que guarda são os documentos e uma garrafa de água de litro meio, pois a alimentação que trouxe também não foi suficiente para aguentar uma semana em que se encontra no local.

A sua presença serve de oportuinidade de negócio para as zungueiras. Elas passaram a ser as principais fornecedoras de alimentos a estes oficiais. O bolinho e a quissangua tornaram-se nas iguarias mais apreciadas. “Combatemos, demos tudo pelo país, mas estamos a aguentar mais este sofrimento para sermos inseridos na Caixa Social”, disse Firmino, de 52 anos.

Os ex-militares podem ser encontrados em duas ruas seguidas do Bairro Lar do Patriota, transformadas em verdadeiros dormitórios, sendo a primeira um quintal abandonado e a segunda passeios e entrada de residências situadas próximas ao ponto de inscrição.

As listas de presença começam a ser peenchidas por volta das 2 horas, momento em que Jorge António, proveniente do Cuando- Cubango, e seus companheiros, abandonam os dormitórios para perfilarem e marcarem os seus nomes.

“Abençoados sem a chuva”

Marcados os nomes, ainda há tempo para mais algumas horas de sono no papelão, plástico ou apenas sobre o betão do passeio com uma almofada feita de bloco de cimento.

“Só nos resta aguentar, filho. É duro passar as noites aqui ao relento, com frio e expostos ao perigo, mas a vida militar ensinou-nos a suportar muita coisa”, disse Jorge António, quando questionado se nunca pensou em abandonar o local por causa das dificuldades.

Horas antes, outros oficiais residentes nas proximidades começam a chegar, todos com o mesmo objectivo: o de ver o seu nome a constar entre beneficiados da FAA. Se há quem reclama pela ausência da chuva em Luanda, depois de mais de um mês do período de transição do Cacimbo, para os exmilitares é bênção e um sinal de que Deus está a poupar-lhes de um sofrimento maior.

Atendimento demorado Os ex-militares queixam-se da morosidade no atendimento, pois alegam que diariamente apenas são atendidas de 15 a 20 pessoas, o que é insuficiente, tendo em conta as centenas que por lá se deslocam. Reclamam ainda que há pessoas que não vistas nas filas e nem escrevem os seus nomes na lista e, contudo, são as primeiras pessoas a serem atendidas.

“Os infiltrados têm contribuído para o nosso sofrimento, porque se tivesse maior organização, certamente que as enchentes diminuiriam. Enquanto uns suportam o frio e a dor do cimento, outros estão em casa e amanhã serão os primeiros da fila”, desabafou o tenente Rui Dala.

Longe das famílias, os ex-militares acreditam que o processo deveria ser melhor organizado, sem necessidade dos que vivem noutras províncias deslocarem-se à Luanda. Importa realçar que a prova de vida é um procedimento legal que tem como objectivo saber se o pensionista é falecido ou ainda vivente.

A mesma compreende uma pequena entrevista aos pensionistas seguida da reconfirmação da documentação que habilita o antigo militar à pensão de reforma. A medida visa detectar, também, a existência de oficiais reformados fantasmas e a existência de oficiais inscritos mais de uma vez com patentes diferentes.

Estima-se que a Caixa Social das Forças Armadas tenha, em todo o país, 50 mil pensionistas. The Best para abrandar o frio Aguentar o frio não tem sido tarefa fácil para todos e para aguentar as noites há quem prefere recorrer ao álcool para acalentar os efeitos. As bebidas quentes dominam as preferências, em que se destaca o whisky em pacotes “The Best”.

Esta é uma das formas que parte dos ex-militares encontrou para encurtar as noites duras passadas em cima de papelões ou cimento, conforme contaram os mesmos a OPAÍS. A alguns metros do “dormitório” há quem tenha também investido no negócio do álcool, dada a procura nas últimas semanas.

Água: apenas para beber e lavar o rosto

Entre os que lá estão há uma semana ou mais, há quem tenha passado este tempo todo sem tomar banho por falta de água e de um local apropriado para o efeito. Aliás, a pouca água que têm, segundo dizem, é usada exclusivamente para beber e lavar o rosto.

“Banhos já não existen nesta semana que aqui estou. A pouca água que tenho no cantil tem outra prioridade”, disse Manuel Firmino. As necessidades menores são feitas ao ar livre e as maiores são em terrenos baldios sem movimento na calada da noite, conforme, contaram alguns oficiais.

Tenentes, capitãs, majores e tenentes-coronéis dizem que as vicissitudes por que têm passado não os afugentam, antigos guerrilheiros, e prometem não abandonar o local até verem os seus problemas resolvidos.

Apesar da ocupação dos passeios, os militares dizem estar a encontrar solidariedade por parte dos moradores do Patriota que impõem apenas como condição a arrumação dos papelões no período diurno e não fazerem necessidades próximo das suas residências.