Nelson Sahuma: ‘Ainda não se sente o impacto que o deputado tem na vida do cidadão’

Nelson Sahuma: ‘Ainda não se sente o impacto que o deputado tem na vida do cidadão’

Nos últimos anos, enquanto consultor da ONG Centro Nacional de Aconselhamento, conhecida pela sigla NCC (National Couselling Center), Nelson Sahuma, 28 anos, tem acompanhado o desempenho dos parlamentares angolanos e a produtividade na Assembleia Nacional. Num dia em que se dá a abertura de mais um ano legislativo da quarta legislatura, o jovem formado em Gestão Pública e Políticas Públicas pelo Instituto Polis, no Brasil, indica o que foi feito no ano anterior e os maiores desafios para o presente

Começa um novo ano legislativo no Parlamento. Qual é a avaliação que faz do ano anterior?

Na verdade, o Parlamento tem um novo desafio, uma vez que o quadro dos deputados mudou consideravelmente, sobretudo no MPLA que agora detém 150 deputados, seguido pela UNITA com 51, a CASA com 16, PRS 2 e a FNLA 1. Vimos também que há um novo formato particularmente naquilo que é o género.

Portanto, há uma maior representação de mulher, no caso 60 parlamentares. Mas penso que o Parlamento produziu pouco. Isto é desde o momento em que os deputados tomaram posse no primeiro ano da quarta legislatura. Produziu pouco uma vez que se cingiu naquilo que são as propostas vindas do titular do poder Executivo.

Mais uma vez, o quadro voltou a repetir- se, o que não deixa de ser preocupante, porque o papel do plenário é trabalhar na feitura de leis. De realçar que durante este período esteve de parabéns a oposição, porque foi a que mais produziu. No ano findo, a oposição produziu sobretudo três assuntos principais, entre os quais o pedido de Inquérito à Dívida Pública, que foi uma proposta apresentada pela UNITA.

Foi também o grupo parlamentar deste partido que apresentou um projecto sobre o Regime Especial de Regulamentação do Património Público e um outro projecto sobre as Eleições Autárquicas. O grupo parlamentar da UNITA foi o que apresentou mais propostas.

O que se passou com o MPLA?

O MPLA, na verdade, cingiu-se mais àquilo que é aprovar as propostas vindas do titular do poder Executivo. Sabemos que o Presidente da República é o presidente do partido. Sendo maioritário, devem acatar aquilo que é a política do partido que governa Angola.

Acredita que os deputados do MPLA possam vir a inverter o quadro e não se apegarem às propostas do titular do poder executivo?

O novo ano em que vamos entrar nesta quarta legislatura vai prometer muito, uma vez que estamos expectantes em relação à postura dos deputados.

O paradigma no país está a mudar e vamos ver qual será a postura tanto do partido na situação como os da oposição. Mas tudo indica que, quanto à produção legislativa ou às propostas vindas do Executivo, posso assegurar que, enquanto o MPLA for a maioria, dificilmente vai barrar uma proposta de lei vinda do titular do poder Executivo sendo o presidente do partido. Portanto, é quase impossível barrar uma proposta vinda do meu presidente, sobretudo se houver antes um conserto interno. No entanto, pode mudar outros aspectos, mas aquilo que for proposta do Executivo dificilmente será chumbada.

Acredita que os partidos da oposição, com a UNITA à cabeça, poderão aumentar a produção legislativa este ano?

Na verdade, em algumas sessões plenárias a que assistimos notamos que há um maior interesse nos partidos da oposição em apoiar em primeiro lugar as iniciativas do titular do poder Executivo sobre o combate à corrupção, à impunidade, ou seja, a marca que o Presidente da República tem. Há esse interesse. Mas acredito que, quanto a este ponto de vista, a oposição está de acordo que o combate seja cerrado, mas não simplesmente combater a corrupção.

A oposição defende também que é necessário que os valores outrora ultrajados dos cofres públicos devam voltar para o Estado. Acredito que haverá algumas questões em que se irão bater e no próximo ano- que começa esta semana – vai trazer quatro assuntos principais que o Parlamento vai discutir infalivelmente.

Primeiro, está a Conta Geral do Estado, vai aprovar o Orçamento Geral de Estado, discutir também sobretudo o pacote autárquico, já que se avizinham as eleições autárquicas, porque precisamos de lei específica que venha delinear melhor aquilo que será o procedimento das eleições.

Outro documento que será discutido é o Código Penal e de Processo Penal. Não nos devemos esquecer também do Decreto Presidencial recente que proíbe as plataformas religiosas, porque há um projecto do Ministério da Cultura que vai entrar também para a Assembleia Nacional sobre o novo modelo para as religiões e liberdade de culto em Angola.

Com a nova composição de deputados no parlamento, consubstanciada na entrada de sangue novo e a manutenção de alguns mais velhos, como é que vê a relação entre os cidadãos e os parlamentares?

Para sermos sinceros, a cada dia que passa a relação entre os cidadãos e os parlamentares tende a melhorar, embora haja ainda um receio sobretudo naquilo que é o acesso às sessões plenárias.

É difícil ter-se acesso às sessões do Parlamento?

Desde os relatórios passados que fizemos penso que há melhorias. O que se pede na verdade é o bilhete de identidade para o cidadão ter acesso à reunião, mas só que não em todas as reuniões plenárias, sobretudo quando o assunto é na especialidade. Na especialidade, há assuntos específicos em que não é permitido ao cidadão entrar e ver o que é que está a ser discutido para a aprovação de uma lei.

O que é grave numa democracia. A experiência que tivemos sobre os parlamentos democráticos num projecto que o NCC teve em parceria com a Open Society, na África do Sul, participamos em alguns encontros das comissões de trabalho sul-africanas em que os cidadãos entravam normalmente para assistir.

Claro que não tinham direito a opinar, mas poderiam assistir, ver o que é que se está a discutir e em fórum próprio dizer aos seus governantes ou deputados o que gostariam de ver melhorado. Na verdade, o acesso melhorou, mas a Assembleia Nacional deveria ser na prática a casa do povo.

Mencionou quatro documentos que merecerão destaque este ano. Pensa que a aprovação do Orçamento Geral de Estado para 2019 será pacífica, tendo em conta que a UNITA sempre votou contra nos documentos anteriores?

O entendimento que tenho é que para a oposição, enquanto a maior fatia do bolo do Orçamento Geral de Estado for para a Defesa e Segurança e os projectos sociais, vai votar contra ou abster-se. A oposição tem defendido dois sectores principais no Orçamento Geral de Estado: a Educação e a Saúde. Mas não tem sido este o entendimento do partido que sustenta o Governo, embora devamos respeitar aquela que é a política governativa do MPLA, que acha que se deve apostar na Educação e na Saúde, mas que se melhore também outros sectores. O que eu também reprovo é o valor reduzido dado à Educação e à Saúde.

Já se manifestou a intenção de se cabimentar cerca de 20 por cento para a Educação e a Saúde nos próximos anos. O que pensa?

A ideia é está. É a proposta que se tem discutido a nível das bancadas parlamentares, mas com a entrada de novos funcionários na função pública, sobretudo na Educação e na Saúde, o bolo será suficiente? Não seria melhor 35 por cento, uma vez que os professores, médicos e enfermeiros precisam de maior dignidade? É necessário discutir- se melhor esta política porque é importante que se dê mais valor à Educação e à Saúde, porque são os sectores primordiais para o desenvolvimento ou crescimento de uma sociedade.

Já se pode notar novos deputados interventivos ou continuam a ser os mesmos a dominar os holofotes?

Os deputados que mais perderam a visibilidade são os ligados ao partido no poder, porque nós conhecemos os deputados habituais.

Quem são os deputados habituais?

João Pinto, o agora deputado Mário Pinto de Andrade, e Salomão Xirimbimbi, que era também um dos destaques. Quanto à oposição não são muitos os deputados a se destacarem. Os conhecidos são Adalberto da Costa Júnior (UNITA), Mendes de Carvalho e Lindo Bernardo Tito (CASA-CE), mas neste primeiro ano não se destacaram tanto assim.

O ‘sangue novo’ já se vai destacando nas abordagens dentro do Parlamento?

Há mesmo o deputado mais novo, Manuel Ekuikui, mas há muito sangue novo sobretudo a nível das mulheres deputadas. Mas é muito complicado dizer se se destacou mais do ponto de vista dos órgãos de comunicação social, pelo lado interventivo. Ainda temos o problema da transmissão dos debates em directo.

Dificilmente os cidadãos vão notar que os deputados estão mais interventivos se não houver transmissão em directo dos debates. Os cidadãos conhecem os nossos deputados? Conhecem os mais mediáticos. As pessoas conhecem aqueles deputados que são mais visíveis num leque de 220 deputados, divididos em círculos e nas suas respectivas comissões.

Os outros têm-se dado a conhecer à sociedade?

Nas suas deslocações periódicas. Mas, de uma maneira geral, não há grandes mecanismos para se darem a conhecer à sociedade, talvez através da TPA, TV Zimbo, as rádios e os jornais. Mas os deputados também têm feito pouco neste capítulo, porque já há uma maior abertura a nível da comunicação social. Por exemplo, se um deputado quiser conhecer o jornal OPAÍS, claro que será bem-vindo. Mas muitos deles não se interessam com isso.

Agora com o aumento salarial não sei se a vaidade terá aumentado também muito mais. Em Angola ainda não se sente o impacto que o deputado tem na vida do cidadão. Porque quando há problemas eminentes, como o que vimos agora sobre o fenómeno religioso, deveriam ser os deputados a procurar as associações existentes, reconhecidas ou em via de reconhecimento, e aproveitar este momento para conversar, já que a proposta irá para a Assembleia Nacional. É um momento oportuno, mas eles também não aparecem.

O que os deputados têm dito sobre as transmissões dos debates?

Deve-se dizer que os deputados do MPLA ou a sua bancada têm tido uma abertura, maior, que não víamos há muitos anos. Há até abertura para conversarmos. Você escreve para uma audiência e recebem- nos normalmente. A postura do passado era diferente? Não era assim antes. Com excepção do ano passado, os três outros anos não eram assim. Havia muita vaidade.

Agora, em virtude dos vários trabalhos que muitas ongs fazem das questões do Parlamento, já há muita mudança. Isso devemos reconhecer claramente. Há uma maior abertura. Há até parcerias que os deputados aceitam a nível dos debates que temos feito na Rádio LAC, alguns dos quais o NCC fez no ano passado e os deputados do MPLA participaram normalmente.

Voltando à questão dos debates televisivos, os argumentos têm sido convincentes?

A fundamentação do MPLA é a mesma: ‘Há crise económica, é preciso reunir as condições’. A oposição defende que há falta de vontade política. E nós, como a sociedade civil, consultores nesta matéria, achamos que o que está em falta não é questões de verbas orçamentais. O nosso parlamento é unicamaral e tem um orçamento aprovado.

O orçamento da Assembleia Nacional tem autonomia e independência naquilo que é o Orçamento Geral de Estado. Deve- se prever já as despesas quanto às transmissões em directo. Se for ao Parlamento verá que os debates que acontecem nas plenárias ordinárias ou extraordinárias são transmitidos nos écrans expostos na Assembleia Nacional.

Existem até funcionários unicamente afectos à televisão parlamentar da Assembleia Nacional ou revistas. Portanto, o que está a faltar mesmo é vontade política. Penso que há um receio, acredito eu por parte do partido no poder, de que os cidadãos se apercebam da realidade daquilo que se discute internamente. Concordo com o Presidente da República João Lourenço, quando dizia no seu discurso de tomada de posse e nos subsequentes, que ‘devemos nos habituar aos novos contextos e às novas realidades’.

Por isso, os deputados no novo ano parlamentar têm um grande desafio pela frente: mostrar realmente que são deputados e que estão a trabalhar para o povo. E não ter receio ter de tentar emendar, aprovar ou reprovar uma iniciativa legislativa do Executivo. Têm que ter esta coragem de que somos independentes, trabalhamos para o povo e temos apenas uma relação de interdependência com outros órgãos de soberania.

É normal que se olhe para os deputados como se fossem um encargo, tendo em conta que no início da actual legislatura alguns deles se opuseram aos automóveis fornecidos para o trabalho?

Eu sempre defendi que a dignidade não vem pelos bens materiais.

O que temos vindo a assistir e a acompanhar com alguns parceiros internacionais é que na maior parte dos países os deputados são muito bem tratados a nível remuneratório.

Eu ainda digo, apesar de que a minha opinião pode ser contrariada por algumas pessoas, o deputado em Angola ainda ganha mal. O que dá 900 e tal mil Kwanzas é o valor líquido, mas o salário base chega a 400 e tal mil Kwanzas. Na verdade, o deputado de um país mais desenvolvido tem maiores regalias ainda.

O que faz com que não venha a justificar o valor que o deputado ganha a nível remuneratório ou os bens materiais que aufere é o pouco trabalho que se faz. Dificilmente nota-se o deputado presente na vida do cidadão. O deputado é o legítimo representante do cidadão no Parlamento.

Há determinadas iniciativas que o Executivo envia como propostas de leis que os deputados deveriam consultar. Tem havido alguma consulta, mas muito restrita a grupos específicos. Portanto, as pessoas têm o direito de reclamar, o que é normal, mas não vamos gastar milhões e milhões de dólares em marcas de carros topo de gama enquanto não há medicamentos nos hospitais e a educação ainda é paupérrima.