Sobre a amizade

Sobre a amizade

Por: JOSÉ MANUEL DIOGO

A única maneira de ser amigo de verdade de alguém, é mostrar total desinteresse pelas qualidades dessa pessoa e absoluto desprezo pelos seus defeitos. É um exercício pendular, tão elíptico quanto cínico, ao qual alguns seres, normalmente melhores que a maioria dos outros, chamam amor. Li num livro, mais vertical que de costume, devia ser de uma Editora onde quem lá trabalhava tinha as mãos pequenas, que, para te perderes tens de fixar o ponto mais hostil do horizonte e caminhares até lá.

Uma vez lá chegado, voltas de novo a fixar o ponto mais hostil desse novo horizonte e novamente te diriges para ele. Chegando a cada novo lugar repetes o exercício até que, ao fixares esse último ponto mais hostil, nada reconheças. Quando isso acontecer, dizia o livro — escrito por Margueritte Duras no calor húmido do Camboja — estarás perdido.

A melhor definição de amor vinha formulada nessas páginas — escritas no ano em que nasci — mas só a consegui reconhecer muitos anos depois e muitas viagens inconscientes depois, até aos lugares mais hostis desses horizontes práticos que nunca escolhia, mas que a cada momento se apresentavam aos meus passos. Deves sempre escolher o caminho para te perderes. Só assim te poderás encontrar. Assim foi connosco durante muitos dias e muitos anos. Assim vai ser durante toda a nossa vida. A procura do amor é sagrada, por isso, perderes-te, é o único objectivo possível. Essa é a essência da verdadeira amizade.

A viagem única, elíptica e pendular, onde o total desinteresse que tenho pela tua alma extraordinária, apenas rivaliza com o desprezo que sinto por todas as vezes que podias ter estado melhor, mas decidiste escolher outro ponto no horizonte, que te parecia mais fácil. E enganavas-te sempre. Ia escrever sobre uma tarde na tua casa. Sobre um qualquer Domingo de paz lânguida. Um desses domingos de Outono ou primavera, onde os dias mudam sempre, mas à mesma velocidade porque nunca mudam de tamanho quando a luz de nós tem mais força que qualquer solstício.

Ia escrever sobre esse dia onde voltei a ajoelhar-me perante o meu Deus; ladainhei as orações da minha infância domingueira; ouvi homens e mulheres, juntos de alma dada nas palavras do apóstolo Lucas; senti que a juventude não era mais que um lugar de partida e que afinal, eu nunca me tinha ido embora. Era isso que eu ia fazer antes de inaugurar mais esta página branca. Mais um desses “infinitus mundi” de onde quotidianamente eu parto rumo ao ponto mais hostil do horizonte.

Ia escrever-te uma carta de amizade que soubesse repousar em ti como uma epístola para depois me perder, como sempre faço na fúria de viver. Ia fazer tudo isso. Arrancar ao corpo as letras necessárias, e com elas pagar, sí-la-ba a sí-la-ba, mais uma passagem para o outro lado do mundo, lá, para onde sempre vou quando fujo de mim. Mas desta vez não escrevo. Não quero ir embora. Perto de ti sei que amanhã o futuro vai ser melhor.