Dionísio Rocha:”Não é fácil fazer um balanço de tantas vicissitudes que temos encontrado na carreira musical”

Dionísio Rocha:”Não é fácil fazer um balanço de tantas vicissitudes que temos encontrado na carreira musical”

Músico, compositor, apresentador e investigador cultural, Dionísio Rocha fala-nos do seu percurso, das conquistas e das vicissitudes por que passou

POR: Augusto Nunes

Como vai a carreia artística?

A carreira artística vai como está Angola. Não podemos exigir muito mais de um país que tem algumas deficiências e naturalmente, a parte cultural é a última parte atendida. Habituámo-nos, desde cedo, ao país quando ele está em crise, a crise maior sente-se na arte, porque é nesta arte que nós sentimos que os nossos casos não são prioritários. E com essa história de não sermos prioritários, nós sentimos que somos esquecidos. Quando eu digo que somos esquecidos, não é essa nossa miudagem de darem passos correctos, mas pelo menos aqueles que conservam as raízes da Cultura, que para muita gente não é conveniente, e nós sujeitámo-nos a sermos tratados com uma certa inconveniência.

Mas de qualquer das formas, nós sentimos que muito já se fez para a Cultura e não temos feito mais porque neste muito que nós fomos sentindo que já se fez, temos sentido de facto, que poderia ser feito um pouco mais. Não quero relacionar muito mais a minha posição, mas há nomes como Elias Dya Kimuezo, nomes como o próprio Carlitos Vieira Dias, há uns que aprecem um pouco mais com o Calabeto e outros, mas que de facto para a continuidade da nossa Cultura devíamos aparecer um pouco mais; um pouco mais porquê? Porque somos um elo do passado com futuro.

Os nossos jovens, por muito que estejam a fazer temas bonitos, não só americanos, como kuduro etc, bem merecem o espaço deles. Eu acho que não transmitem muito bem a história que nós fomos carregando ao longo desses anos. Há pouco você perguntou quando é que eu comecei a cantar, então desde 1950, eu gostaria de com o tempo, se possível, ir transmitindo aos nossos jovens tudo aquilo que nós vimos ao longo desses 68 anos. Digo isso porque quando nós começamos a fazer actividades de rua, recitais, espectáculos nas escolas, nos bairros, como por exemplo do Benfica e em Benguela, sob tutela do Grande Mulambo “Mulambinho”, um nome que eu adquiri a partir do professor Mulambo.

Sou um dos miúdos que andou aqui na Liga Africana, no tempo do Liceu Vieira Dias, do Antonino Van- Dúnem e outros, eu fui aprendendo com um grupo de teatro denominado “O Gesto”, que transmitiu muitos ensinamentos da nossa Cultura e não só, aos outros jovens da geração anterior à minha. Foi assim em Benguela, porque eu sou companheiro do Timóteo, Fernando Rá, por exemplo, era outros dos nomes que ensaiava os nossos passos nos anos 50, no Bairro Benfica. Daí para diante foi só alastrar a nossa área de acção e deixar só o bairro Benfica, mas também ser da Canata onde nós acompanhávamos nomes do music–hall como Zé Cordeiro, por exemplo, e mesmo em Benguela, tivemos a oportunidade de cantar e ouvir as serenatas do nosso Tchikutu da Viola.

Andava de janela em janela, foi um apaixonado irreversível, na altura todas as garotas, de janela em janela, gostavam de ouvir a voz do Tchikutu. Hoje, a gente no music–hall ainda ouve uma ou outra canção interpretada por Carlos Lamartine, que na altura viveu também momentos agradáveis com este ambiente de teatro, de cultura. Nós tínhamos o Tchinhanji que na altura era defendido, era uma base fundamental do desenvolvimento da Cultura a partir dos bairros suburbanos de Benguela. Era questão de ver por exemplo no Lobito, estando na Canata olhando para os morros, sobretudo do Lírio, víamos e sentíamos o Tchinganji a dançar para uma plateia enorme para toda Canata e Caponte. São pormenores, de facto, que não se limitam só ao Lobito e a Benguela.

68 anos de carreira, que lembranças tem percurso?

Não é fácil fazer um balanço de tantas vicissitudes que temos encontrado na carreira musical. Um exemplo, só para lhe dar uma ideia: quando eu pela primeira vez apareci com os Negoleiros do Ritmo, no Cinema Miramar, num espectáculo denominado “Kazumbi”, o nosso cachet no fim do concerto foi um saco de dropes (um saco de rebuçados), foi o que os Negoleiros receberam nesse dia. Só essa vicissitude, hoje, olhamos para trás e ficamos traumatizados. Hoje, vimos que há indivíduos que mal sabem cantar, a maior parte das vezes a dançar com gestos obscenos, chegam a ganhar no fim de uma actividade, um carro ou uma casa. E como é lógico, a tendência é sempre pegar naquele excesso e gastar no excesso, meter-se na droga, no álcool e noutras avarias.

Mais tarde, todos os artistas que passavam pelo Ngola Cine ganhavam como cachet entre 150 a 300 angolares, (Escudos de Angola) naquele tempo. Mas, a maior parte era 100, 150. Isto não podia dar satisfação a ninguém. E hoje, ficamos mais traumatizados por todo o sucesso que nós fizemos, como vês, vivo numa casa modesta. Não tenho uma casa de um Gajo que fez tantos espectáculos, chegou a atingir os píncares da lua, agradando a gregos e troianos, públicos não só de Angola, como de várias partes do mundo, estamos aqui numa casa modesta. Não queira dizer que esteja mal, eu sinto- me satisfeito. Mas quando olho para a toda a trajectória e as vicissitudes que passamos, é que eu sinto pena. Hoje, não temos nem comparação com estes, uma parte deles até com os nossos alunos. Não temos nenhuma comparação com a vida artística que hoje é realizada na cidade. É triste!

De que forma o Ministério da Cultura ou as outras instituições ligadas às actividades artísticas deverão actuar para inverter o quadro?

O próprio Ministério da Cultura, de certeza que teria que começar por pagar as dívidas que tem contraídas com alguns artistas. Quando ultrapassar isso, vamos ver como é que deve pagar os artistas. Depois disso, obrigar todos os artistas que queiram ser profissionais e usufruir de cachet, a estudar, saber executar um instrumento e interpretar uma pauta. Nem todos os profissionais são astros, os melhores que nós temos aqui na praça. Mas aqueles que não são os melhores da praça não podem de forma alguma ter os mesmos direitos que aqueles que lutaram para trabalhar, para estudar. Mas quem tem culpa é o próprio Ministério da Cultura. Um país que tem tantos anos de vida já teria uma disciplina generalizada, desde o António Jacinto, até a última Ministra, devíamos ter criado meios para que de facto, nós tivéssemos uma possibilidade de ter pessoal educado. Isto não acontece só na educação, nos analfabetos que nós temos no país.

Hoje, segundo a última estatística, diziam que 25 % da população em Angola é analfabeta. É mentira, tem muito mais. O analfabetismo não só na educação é em vários aspectos. Se eu colocar aqui uma pauta e você não conseguir decifrar se quer a clave que está no início da pauta, vaime dizer que é artista? Não pode ser. Não vamos comparar! Podemos é fazer havia como antigamente. Tínhamos os profissionais que eram admitidos para trabalhar nas Boites e nas casas nocturnas, e em grandes espectáculos, como o Chá das 6, o Kazumbi do Ngola Cine, nesses sim, iam e eram acompanhados por um conjunto básico. É assim que nós podemos analisar o não feito, porque agora temos uma outra forma de analisar as coisas. Antigamente, não era quem quer éera quem merece. Agora é “Vamos Corrigir o Que Está Mal e Melhorar o Que Está Bem”, então vamos melhorar o que está bem, porque o que está mal vamos simplesmente neutralizar, não valha a pena…!, por que não vamos, daqui há uns 40 anos, estarmos outra vez em Zeta: “Não é Para Quem Quer é Para Quem Merece”…

Pela experiência que tem, acredita que hajam indivíduos chamados artistas e não sabem interpretar uma pauta?

São muito poucos que sabem, muito poucos mesmo. Não sei se os dedos da minha mão seriam suficientes, mas vamos já contar com os dedos deles. São muito poucos que fazem isso. Há alguns que até não são nenhumas vedetas, não são nenhuns casos raros de exibição, mas até hoje sei que eles estão na Academia de Música a tentar aprender. Antigamente, um mais velho com a 4ª Classe dominava uma série de matérias em que muitos formadíssimos que eu estou farto de ver aí em determinados pódios são incapazes. Não é preciso ser-se doutor para compreender as coisas, porque mesmo alguns doutores continuam a falhar demais. Era preciso, no mínimo, que cada um cada um desses alunos das profissões artísticas musicais pudessem ter uma aproximação antiga à 3ª classe.

Eu recordo-me que quando comecei a fazer espectáculos não percebia nada, mas depois entrei para a escola 30 em Benguela, de Manuel Cerveira Pereira. Lá aprendi a solfejar, deram-me pautas musicais e dizer quais são os nomes das figuras, qual é composição das notas em cada linha daquilo que nós chamamos pauta, aprendi isto até à 4ª classe. Depois na 4ª classe quando vim cá para Luanda e entrei para o Liceu Salvador Correia, tive um professor de canto coral que ensinava a colocar a voz e melhorar, ensinava a fazer gestos perfeitos e não deixava que o artista aparecesse abandalhado em palco. Ainda frequentei um pouco a Academia de Música, mas não fiz nenhum curso superior de música. O que eu aprendi foi suficiente para eu saber colocar a voz no sítio certo, no sítio da pauta. Devo dizer que nem todos os artistas tiveram a sorte de passar por aí, assim como nem todos os angolanos tiveram a sorte de passar pela escola. É como quem dizia ao outro, nem todos somos iguais.

Quando é que apresentou-se pela primeira vez ao público e qual foi a sua primeira canção?

A primeira vez que que pisei o palco foi em Benguela, em 1950, com os mais velhos, um era de São Tomé e Príncipe, o outro cabo- verdiano Djoy, esteve cá em Luanda e ultimamente tocava no Marçal, de janela em janela. Ele fez parte da primeira banda que acompanhou-me em Benguela no espectáculo do Mulambo, nas récitas que fazíamos. Também nessa altura, outros grupos estavam a ser formados. Só para responder a pergunta certa, a música que eu cantei pela primeira vez na récita já com influência latinoamericana, fazia menção a Mambo e eu soube mais tarde que esta era uma das canções que nas peças teatrais da Liga Nacional Africana era apresentada pelo falecido Carlitos Lacerda “Paizinho” e outros nomes naquela altura, que nessas peças Antonino Van- Dúnem, Gabriel Leitão e outros também faziam parte, um conjunto de nomes que já não me vêm a mente. O Moisés quando foi à Benguela, levou estas músicas e ensinou os filhos dos Camundongos que estavam lá na altura e nós aprendemos. Foi assim que eu aprendi esta música lá. Mas depois, conjuntos já de base que me acompanharam aqui em Luanda, isto é no Botafogo foram Os Kimbandas do Ritmo. Nós tínhamos todos os Domingos, no Botafogo, uma récita para dinamizar a juventude, e até para distrair lá o pessoal do bairro. Aquela zona que está por trás do Maxinde. Na altura, ainda não havia Maxinde. Aliás, a polícia quando encerrou o Bota-fogo.