Um terço das mulheres lusas mortas tinha apresentado queixa

Um terço das mulheres lusas mortas tinha apresentado queixa

Polícia Judiciária (PJ) analisou os 43 homicídios conjugais ocorridos de 2010 a 2015 em Lisboa. Maioria das mortes foi 2 meses após separação

POR: Rute Coelho/Diário de Notícias

Um terço das 43 mulheres assassinadas pelos maridos nos últimos cinco anos, na Grande Lisboa – ou seja, 13 – já tinha apresentado queixa às autoridades por violência doméstica. Mais de metade das vítimas estava em processo de separação (51,2%), por iniciativa delas, e a grande maioria das mortes (68,4%) aconteceu no prazo de dois meses após a separação. Estas são algumas das conclusões preocupantes do estudo “Homicídio, femicídio e stalking no contexto das relações de intimidade”, desenvolvido pela Polícia Judiciária portuguesa, em parceria com investigadores da Universidade do Minho, do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz e do Ministério Público (Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa – 7ª Secção). Na data em que o Diário de Notícias publicou esta matéria que OPAÍS retoma (os de Angola não foram publicados) a 17 de Março de 2017, a equipa científica tinha analisado 43 processos crime de homicídios conjugais dos 45 ocorridos na Grande Lisboa de 2010 a 2015.

Ficaram apenas de fora dois processos por se encontrarem na fase de recurso, como adiantou ao Diário de Notícia Cristina Soeiro, psicóloga da Polícia Judiciária, uma das investigadoras. A recolha continuou para agora concluir (2018), um retrato nacional deste fenómeno. Afinal, Portugal apresentava uma média de 42 mulheres assassinadas por ano (resultado a que se chega fazendo as contas dos totais anuais de 2010 a 1015). “Foi revelador perceber que dos 43 casos da Grande Lisboa, 65% já eram vítimas de violência doméstica prévia e, dessas mulheres, quase metade já tinham denunciado a situação às autoridades”, comentou Cristina Soeiro. “A quantidade das vítimas que se queixou de violência é muito superior ao que achávamos ser possível.

É representativo. Mas estamos a falar da Grande Lisboa, vamos ver como será no Norte do país, para onde vamos avançar na próxima fase do estudo”. Dos fatores de risco avaliados pelo estudo, constata-se que a maior parte dos homicidas (46,5%) tinha acesso a armas de fogo (46,5%), precisamente o tipo de arma mais usado nestes crimes (em 41,9%) dos casos, logo seguido da arma branca (37,2%). Mais: em 82,1% dos homicídios já havia violência psicológica, a maior parte dela através de ameaças de morte à vítima (64,3%). Dos 43 processos crime analisados, 27 tiveram condenações e 16 foram arquivados por suicídio do homicida depois de ter assassinado a mulher.

Medidas de coação falham

O que está a falhar no sistema para não se conseguirem impedir estas mortes, mesmo quando as vítimas até já tinham apresentado queixa por violência doméstica? “Falham as medidas de protecção das vítimas e as medidas de coação aos agressores aplicadas pela justiça”, responde Iris Almeida, uma das investigadoras do estudo, psicóloga na equipa do Instituto Superior de Ciências da Saúde do Egas Moniz, que faz a avaliação de risco dos casos para os tribunais. “Já me aconteceu acompanhar um caso em que o juiz de instrução aplicou a proibição de contactos ao agressor, quando este e a vítima, que estavam já separados, até viviam no mesmo bairro”, exemplifica a psicóloga. Iris Almeida recorda-se também de agressores que acompanhou que “tinham várias queixas de violência doméstica contra eles mas a única medida que a justiça lhes aplicou foi o afastamento da vítima”.

Razão pela qual considera que se o afastamento não for controlado através de pulseira eletrónica ou vigilância das autoridades não é eficaz. Por outro lado, se 51,2% das mortes aconteceram em casais que estavam em processo de separação, seria de supor que essa fase (do divórcio) fosse considerada de risco para a mulher. Mas não é isso que acontece. Muitas vezes os tribunais consideram que se o casal está em separação já não há risco. Pelo contrário, há risco porque o homem agressor não concebe a sua vida sem a mulher”, analisa Iris Almeida. Na avaliação de risco que a psicóloga Iris Almeida faz para os tribunais tem constatado outro pormenor: “Os agressores sabem que dificilmente são presos pelo crime de violência doméstica. Sabem que é difícil aplicar a prisão preventiva nestes casos e também que, em julgamento, são raras as condenações a pena efectiva de prisão por violência doméstica”.

Prisão para agressores é rara A título de exemplo, a Procuradoria- Geral Distrital de Lisboa divulgou, em Agosto de 2015, que em 1.059 casos de violência doméstica analisados num período de nove meses, mais de um terço (36,6%) dos processos, terminaram com uma absolvição (388 casos) e das 665 condenações, apenas 84 foram a prisão efectiva, ou seja, 8% do total. As outras condenações foram a pena suspensa (146 casos) e a pena suspensa com imposição de regras de conduta (382 casos). A psicóloga Cristina Soeiro, da Polícia Judiciária, adiantou ainda que o estudo não reflecte os efeitos de novos instrumentos que foram introduzidos no sistema, como a avaliação de risco feita pelas polícias.

“Mas os polícias têm de ser treinados para usar a avaliação de risco. E temos que melhorar a intervenção nos agressores: têm de ser retirados de cena”. Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), também é da opinião que “o sistema de protecção às vítimas de violência doméstica não está a funcionar e as medidas de coação são aplicadas tardiamente”.às vítimas logo depois destas comunicarem às forças de segurança a violência doméstica. Está neste momento a trabalhar uma equipa que foi recentemente criada para fazer uma análise retrospectiva dos homicídios. Está a funcionar no quadro do Ministério da Administração Interna com a secretaria de Estado da Igualdade. Vão tentar perceber o que falha.

Mas, na sua perspectiva, o que pode correr mal logo a seguir à apresentação de queixa da vítima?

Ainda não temos uma resposta para isso mas apenas preocupações. Será que falhou na aplicação da pulseira eletrónica, porque não se encontraram meios para proteger a vítima, porque a vítima depois da queixa desvalorizou as agressões? Enfim, não sabemos. E é por isso que é preciso analisar os factores, que podem ser vários. O que eu percebi é que havia uma falha legislativa.

E qual era essa falha legislativa?

A que levou a que apresentássemos um projecto lei para a regulação urgente das responsabilidades parentais em processos de violência doméstica. As vítimas passam a sentir maior segurança porque sabem que as regras do jogo são mais claras. Queremos que o direito de visita e de guarda não prejudique a protecção da vítima nem das crianças. Para mim isto é absolutamente vital. Espero que esta medida legislativa resulte.

O objectivo será também melhorar a articulação entre os processos penais e os cíveis?

Sim, porque essa articulação existe mas precisa de ser melhorada.

E para evitar casos em que a responsabilidade parental dos filhos venha a ser atribuída a um agressor…

Sem dúvida. Mas além desta falha legislativa que percebi que existia pode haver outras. Fomos nós que propusemos a vigilância electrónica aos agressores, eu era presidente para a Comissão da Cidadania e Igualdade de Género. Hoje sabemos que esta medida tem resultados. Fomos o segundo país, depois de Espanha, a adoptá-la.

A violência no namoro mostra homicídios nos mais jovens. O que fazer aqui?

Aqui tem de se apostar na educação para a cidadania, que vai voltar aos currículos escolares.