António dos Santos (Kidá): “O Estado tem de prestar maior atenção aos aspectos culturais”

António dos Santos (Kidá): “O Estado tem de prestar maior atenção aos aspectos culturais”

 

O gravurista António Feliciano Dias dos Santos, conhecido no mundo artístico por Kidá, sagrou-se vencedor do Prémio Nacional de Cultura e Artes, edição 2018, na categoria das Artes Plásticas. O artista que também é professor de Artes há 38 anos disse ser pouco conhecido pelo público angolano, pelo facto de gostar de trabalhar nos bastidores. Esta noite recebe a sua consagração

Texto de: Antónia Gonçalo

Kidá que, em 1987, foi vencedor do primeiro Prémio Nacional de Gravura, e em 1999 do Prémio Cidade de Luanda de Artes Plásticas/ Gravura disse que a gravura tem pouca expressão no país, devido a falta de educação artística.

O artista defende ainda que o Estado deve prestar maior atenção aos aspectos culturais, por tratar- se da identidade da uma Nação. É o vencedor do Prémio Nacional de Cultura e Artes, edição 2018, na categoria das Artes Plásticas e trabalha nesta arte há 38 anos.

Acha que o prémio chegou tarde, ou nem por isso?

Ouvi alguns comentários de pessoas que diziam que devia ter ganho muito antes o prémio, mas não estou incomodado com isso. O prémio é a consequência de uma trajectória longa, de persistência artística. Foram degraus galgados, por uma questão de meritocracia.

Há pessoas a darem passos maiores do que as pernas. Muitos me ultrapassaram e poderão ultrapassar, mas prefiro fazer o meu trabalho nos bastidores. Não sou pelo populismo ou quantidade, mas sim pela qualidade. Os holofotes por vezes projectam gente eventualmente famosa, mas nos bastidores existem pessoas altamente profissionais e competentes, que não se expõem.

Só aparecem por necessidade incontornável, porque de resto, as suas obras falam por si. Isso tem nome: humildade.

Qual foi a reação quando recebeu a notícia?

Não fiquei tão surpreendido quanto as pessoas esperavam. Há praticamente 38 anos que dou o meu contributo na formação artística. Não gosto de me expôr, porque sou muito cauteloso na gestão da minha imagem. Dou o meu contributo sem a necessidade de fazer alaridos. Por essa mesma dinâmica até o ano passado fui também o director Nacional de Formação Artística.

Diz-se pouco conhecido pelo público, por quê?

Pouco gosto de falar de mim. Pela humildade nata não gosto muito de me descobrir, prefiro que me descubram. Essa é a minha filosofia de vida. O meu lema é trabalhar e trabalhar nos bastidores, de preferência. E aí está o resultado deste trabalho e ainda bem que existem pessoas justas, que saibam avaliar o trabalho das pessoas com justeza.

Como descreveria a sua trajectória no mundo das artes plásticas?

Em 1980 fiz o primeiro curso de Gravura, na oficina experimental da União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP), onde começou a minha trajectória artística.

No curso éramos 13 elementos e fui o único sobrevivente. A partir daquele momento fui eleito o responsável da oficina de gravura pelo Viteix. A partir deste momento assumi esta arte. Em 1989 fui fazer o curso de Artes Gráficas em Portugal, mas antes disso já havia galgado um pequeno percurso. Fiz exposições em quase todo mundo, entre os continentes africano e europeu. Muitos estão admirados pelo facto de ser o vencedor nesta edição, mas não é novidade para mim e para aqueles que conhecem o meu trajecto e a arte em profundidade.

Durante este período foi também professor. Teve sempre preocupação pela formação? Fui passando os meus conhecimentos aos gravuristas. Tanto que hoje tenho o privilégio de dizer que temos alguns artistas plásticos formados nesta área. Formei vários e os que mais se destacam é o jovem Manuel Ventura.

Um artista competente passei-lhe o testemunho, de levar esta arte para frente, conforme aconteceu comigo. Além dele temos o Paulo Vemba e o Lino Damião que se destacam nesta arte no país.

Por que é que a gravura tem pouca expressão no país?

A gravura tem um processo muito complicado de execução, do ponto de vista técnico. É muito diferente da pintura, escultura e tecelagem. Eu também sou ceramista, pintor e faço desenhos. Deste modo poderia até deixar de praticar a gravura, mas não aconteceu. Muitos fogem fazer gravura devido à metodologia que se adaptou no país, que não é a mais correcta. Os que sobressaem mais nas artes plásticas são a pintura e escultura. Os demais ninguém quer saber. Aí começa o dilema. Os prémios que foram instituídos dão maior ênfase à pintura e à escultura.

Todos os artistas querem fazer esta arte pela notoriedade. Já muitas vezes fui questionado, porquê continuar a fazer gravura?

Mas, digo sempre que não trabalho para prémios. Justifica-se também o facto de não haver mercado no país para a gravura? O problema não é o mercado. Discordo essa afirmação.

Enquanto pedagogo digo que é por falta de educação artística. Mesmo o mercado para as outras disciplinas das artes plásticas está enfermo. Qual é a razão de não haver muitos gravuristas pelo país. Será uma arte menos apaixonante? Nós formamos muitos estudantes nas distintas áreas das artes, como música, dança, teatro e artes plásticas, mas o problema é que foi criado um sistema de que o prémio é que valoriza o trabalho do indivíduo.

Os artistas dedicam-se pouco à gravura porque instituíram que os prémios são mais para a pintura e escultura. Isso fez com que as pessoas se habituassem a trabalhar para os prémios. Por isso é que todos querem ser pintor e escultor, porque são as disciplinas que hoje têm maior visibilidade.

Um erro que eu não posso concordar. Não se deve também à falta de muito pouca divulgação desta arte, a gravura?

A divulgação tem sido feita. Eu tenho estado a me representar em vários eventos no país como no exterior. Temos a tecelagem e a cerâmica que também precisa de um imput. O problema está relacionado com a valorização e o engajamento. O outro factor era a falta de escolarização. Agora com Complexo das Escolas de Arte (CEARTE) vai começar-se a valorizar mais essa arte.

Do ponto de vista pedagógico a gravura era tida nas escolas de artes como uma disciplina geral, e as de especialidade eram a pintura e a escultura. Mas com o CEARTE passou a ser de especialidade. Quero com isso dizer, que veremos especialistas em gravura no país, até mesmo no Instituto Superior de Artes (ISARTE). E quem deve zelar pela educação artística no país? É o Estado. Aí é que entra o Ministério da Cultura, para impôr regras e disciplina. Temos que rever os planos curriculares.

Temos que educar em primeiro lugar os interessados nas artes e na cultura, em segundo lugar a sociedade em geral. Se não fizermos este trabalho profundo continuaremos a vivenciar este dilema. As referências artísticas ao nível nacional não são conhecidas, o paradigma tem que ser mudado. Nós somos apologistas de que para haver uma formação artística, tem de haver escolaridade e profissionalismo.

A seu ver, como devia funcionar a formação artística no país?

A arte é uma profissão como qualquer outra, por isso devia ser ministrada desde o ensino elementar, médio até ao superior. Um indivíduo que se formou em engenharia ou medicina tem que ter essa componente no seu currículo, para que possa valorizar e conhecer a arte, para que tenha sensibilidade com as artes.

Andamos a brincar com a arte e até nem conhecemos quais são as referências no mundo das artes plásticas, porque não são dadas a partir das escolas.

Como assim?

O próprio Estado em si tem que prestar maior atenção aos aspectos culturais, que sempre foram delegados a terceiro ou quarto plano. Se estamos agora a lutar com a educação e saúde que são as prioridades, concordo, mas a cultura é a identidade de uma Nação.

É o espelho de uma Nação. Angola é um país muito mais rico do ponto de vista cultural e é uma fonte inesgotável. Se não prestarmos a devida atenção aos aspectos culturais, vamos perder a nossa identidade. Felizmente, depois de muito tempo conseguimos ter o CEARTE, inaugurado em 2015.

Foi também professor no CEARTE até 2017. Esta instituição tem estado a cumprir com os propósitos pelos quais foi criada?

Este espaço poderia ser bem melhor, se houvesse políticas culturais e artísticas bem delineadas e seguidas a rigor. O CEARTE foi uma grande conquista para a formação artística no país, mas ainda está aquém, apesar dos reconhecidos esforços, das expectativas tecnicamente falando. Precisamos melhorar em alguns aspectos.

Para nós que somos da essência do projecto, aquilo que é feito hoje não nos satisfaz. Há técnicos autorizados para falar das artes em Angola, assim como acontece ao nível do teatro, música e dança.

As condições técnicas também precisam de ser melhoradas. Quando inauguramos o espaço pretendíamos que fosse uma referência pelo menos ao nível da África Austral.

Criou-se lá um internato, com o objectivo de albergar os alunos que viessem das outras províncias. Achamos muito interessante, mas não funciona desse modo.

Como é que tem funcionado o internato?

Uma vez que não temos a expansão do ensino artístico ao nível de todo o país, projectamos que Luanda seria o ponto de partida, para que todos os estudantes com vocação artística, nas distintas vertentes, que não tivessem condições para estar na capital do país, ficassem neste internato.

Pelo menos desde a sua inauguração em 2015, até o ano que saí, 2017, não houve. Isso porque tudo esta escudado no factor crise económica. Se os sectores chaves foram afectados pela crise, imagine então o sector da cultura, que sempre foi relegado para o terceiro ou quarto planos.

O perfil do artista formado deve ser profissional e igual às outras áreas de formação do saber científico. Além do talento, o artista deve estar munido de elevada sensibilidade, que difere dos demais na sociedade.

Nos outros países os cidadão têm princípios básicos sobre a cultura, porque durante a sua formação lhe são dadas essas ferramentas. Hoje, além do CEARTE temos o Instituto Superior de Artes (ISARTES) que tratam sobre as várias disciplinas artísticas.

Ainda assim não são suficientes para acudir a situação?

Falta-nos um curso elementar que ainda não está instituído. A formação completa é como qualquer outro curso, começa-se na base.

Por isso é que as artes não são respeitadas no país, porque falta uma legislação, integração social, pedagógica, artística e cultural que valorize estas áreas. Não é normal quando alguém pergunta aos músicos se para além de cantar tem outra profissão.

Isso implica dizer que a arte e a cultura são subalternizadas ao extremo. Há que se saber valorizar, porque o contexto da formação artística também contribui para o desenvolvimento integral do cidadão.

Despois de muitos anos de trabalho está agora na reforma. Deste modo, divorciou-se também da arte?

Depois de muitos anos de trabalho, enquanto técnico e professor de arte, entrei para a reforma merecida no ano passado. Porém, não me divorciei da arte nem do Ministério da Cultura. Primeiro, é o único organismo para o qual laborei, estando sempre que possível disponível em colaborar com a instituição, se solicatado.

O ARTISTA

Bengo (1961). O artista plástico nasceu em Sassa-Cária, Dande, como António Feliciano Dias dos Santos. Em 1980 recebeu a sua primeira preparação artística e o correspondente certificado, ao frequentar em Luanda um curso de Gravura Artística. Filiou-se na União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP) nesse mesmo ano. Algumas das suas obras serviram de ilustração de capas e interior de livros.

Tem participado na produção e reprodução de pinturas murais, discos, cartazes, postais, etc., e em exposições colectivas, tanto no país como no estrangeiro. Lecciona desde 1995 as disciplinas de Artes Gráficas: Teoria e Prática de Design e Técnicas de Impressão, inicialmente no Instituto Nacional de Formação Artística e Cultural (INFAC) e hoje na Escola Nacional de Artes Plásticas (ENAP), em Luanda.

Ganhou em 1987 o primeiro Prémio Nacional de Gravura e, em 1999, o Prémio Cidade de Luanda de Artes Plásticas/Gravura. Em 2008 foi o autor do Logotipo da Expo Zaragoza. Kidá é licenciado em Sociologia pelo ISCED. Também escreve poesia, toca guitarra, compõe e canta.