“Fantástico”. O cante alentejano chega a Washington e conquista a América

“Fantástico”. O cante alentejano chega a Washington e conquista a América

Loira, de cabelo apanhado num carrapito e óculos de massa preta, Nicole Kister veio com as amigas ao Kennedy Center para assistir ao concerto das 18.00. “Estamos em Washington para umas aulas de políticas. Viemos da universidade de Elon na Carolina do Norte”, explica. São um grupo de 20 amigas e decidiram ter a “experiência total” da capital da América. O que nem Nicole nem as amigas imaginavam é que essa experiência ia incluir cante alentejano. Nesta Segunda-feira à tarde é o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento que sobe ao palco Millennium do Kennedy Center, ali junto ao rio Potomac, que separa o Distrito de Columbia da vizinha Virgínia.

O grupo está na capital americana para a apresentação do festival Terras Sem Sombra, que este ano tem os EUA como país convidado. Fundado em 2003, já teve como convidados, a China, Espanha, Brasil ou Hungria. Desta vez foi à América que trouxe as vozes dos Cantadores e um pedaço do Alentejo. Traje domingueiro, chapéu na cabeça e lenço de seda ao pescoço, os Cantadores sobem ao palco sob os aplausos. Depois das Janeiras, seguem-se os Reis, mas é com o Entrudo e a viola campaniça de Pedro Mestre que põem a plateia a bater palmas. O instrumento quase desapareceu, mas está agora a ser recuperado, com exemplares que estavam esquecidos nos sótãos e no fundo dos armários. Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão. SUBSCREVER “Houve um momento de interação com o público, foi engraçado”, diz António Silva no fim da actuação.

O responsável pelo Rancho admite sentir-se aliviado por ter sido uma sala cheia a que esperava os Cantadores quando subiram ao palco. É só lamenta que a barreira linguística não os tenha deixado tirar mais partido da participação do público. “Foi bom para nós, Cantadores alentejanos, apresentar a nossa cultura aqui”, garante. E acrescenta: “Estamos de ego cheio. Queremos que sintam que estamos ali em cima a cantar com muito orgulho.” “Estamos de ego cheio. Queremos que sintam que estamos ali em cima a cantar com muito orgulho.” Foi esse orgulho que Mony sentiu. Ela é da Costa Rica, mas vive em DC, e veio com o marido, o uruguaio Santiago, assistir ao concerto.

Ele vem de capote – “estivemos em Portugal no verão, mas a capa comprei online”, explica -, mas é ela quem mais se desfaz em elogios aos Cantadores. “Adorei o facto de serem de uma pequena aldeia e de virem aqui apresentar a sua cultura. Sentiase que estavam em palco com orgulho. Adorei os chapéus, adorei o traje, adorei a sobriedade e adorei quando faziam assim (e imita o grupo a abanar de um lado para o outro)”. Para os muitos americanos na sala, são as vozes mais do que as letras que impressionam. O poderio das vozes, a capela ou acompanhadas à viola campaniça. O poderio das vozes de mais de duas dezenas de homens. Jovens como João Batista, aos 21 anos, o mais novo dos que vieram a Washington, ou veteranos, como Francisco Vinagre, que aos 92 anos continua a não falhar uma actuação.

Pedro Mestre toca a viola campaniça

E se lhes escapou a beleza de poemas como este de João Monge – Se passares na minha aldeia/ não vás de cabeça ao léu/ quando o sol mais almareia/ podes pôr o meu chapéu/ podes pôr o meu chapéu/ a mais valiosa herança/ já foi de quem está no céu / e não me sai da lembrança – isso não impediu os americanos presentes de acharem o Rancho “fantástico!”Nana, Kyle, Kris e Ana admitem que não sabiam nada sobre cante. Mas isso não os impediu de virem ao Kennedy Center quando viram o anúncio na Internet. Tal como Lula e Dylan. Todos eles ficaram surpreendidos com a atuação. “Adorei que não tivesse música”, exclama Lila. Foi também online que ouviu falar do concerto, tal como Nicole e as amigas da Carolina do Norte e também Wendy. Residente em Nova Iorque, veio tomar conta do neto enquanto o filho ia a uma conferência, mas devido ao shutdown, o encerramento parcial do governo americano, “há muito pouco para fazer”. Por isso quando ouviu falar neste “evento maravilhoso”, não hesitou. “Não sei nada sobre Portugal, mas estou ansiosa por ouvir”, afirma antes do início do espectáculo e enquanto empurra o carrinho de bebé.

Rigoroso processo de selecção

A sala leva cerca de 250 pessoas e está praticamente cheia. Para ali actuar o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento teve de se submeter a um rigoroso processo de selecção. “ É feita uma candidatura, que é analisada por um júri musicológico. Partir daí é decidido se sim ou se não, quando tempo têm, em que horário”, explica. Os concertos, como o desta segunda-feira, são normalmente gratuitos. Neste caso, a candidatura foi apresentada pelo festival Terras Sem Sombra, mas foi o Rancho que a construiu tecnicamente, apresentando gravações, características da música ou bibliografia.

As candidaturas são gratuitas, tal como os concertos. Para o festival e para o Rancho, esta oportunidade de levar o Alentejo e o cante aos americanos não teria sido possível se este último não tivesse entrado em 2014 para a lista do património imaterial da Humanidade da UNESCO. E José António Falcão destaca o profissionalismo dos Cantadores, que apesar das condições adversas – uma viagem longa, noites mal dormidas e grandes variações de temperatura – “mantêm um nível artístico absolutamente impecável”. Com uma delegação que inclui empresários e presidentes de câmaras do Alentejo, o presidente do Terras Sem Sombra faz até agora um balanço positivo da parte artística.

Os encontros de negócios, esses, acabaram afectados mais pela neve, que no Domingo cobriu Washington com um espesso manto branco e na segunda manteve escolas e repartições públicas fechadas, do que ao shutdown do governo. Mas “ para o Terras Sem Sombra este é o alcance de um dos nossos grandes objectivos: mostrar a possibilidade de internacionalização de um território a partir da música”. Terminada a actuação no Kennedy Center, o tempo ainda não foi de descanso para os Cantadores. Esperava-os um jantar na residência do embaixador de Portugal nos EUA, Domingos Fezas- Vital. Ali cantaram mais duas modas. Pelo menos oficialmente, mas a noite não acabou sem mais cantorias, junto à mesa onde se serviam os vinhos da Vidigueira.