Carlos Fernandes: “É mais duro ser gay em Cabinda do que em Luanda ou Benguela”

Carlos Fernandes: “É mais duro ser gay em Cabinda do que em Luanda ou Benguela”

O que é a Íris?

A Íris é a uma associação de LGBT e Gays, que engloba as lésbicas, bissexuais, transsexuais e intersexos. A nossa ideia em nos juntar era no sentido de nos apoiarmos nós próprios, por forma a dar voz à nossa comunidade dentro da sociedade angolana.

Foi difícil reunir a comunidade de gays, lésbicas, transexuais para se criar a associação?

Não. As pessoas, no geral, não tinham conhecimento, mas nós já somos uma comunidade há bastante tempo. Entre nós, nos conhecemos há bastante tempo, apesar de que a sociedade só mais tarde, em 2018, teve conhecimento devido a este boom. Por exemplo, eu faço parte de um grupo específico da nossa comunidade há mais de 12 anos. Nos primeiros anos pouco se ouviu falar de nós, porque fazíamos um trabalho mais interno. Queríamos unir mais a comunidade e saber como é que iríamos trabalhar com esta problemática, as barreiras e outras situações que existem.

É difícil ser gay, transexual ou lésbica em Angola?

Normalmente digo à minha mãe, mesmo que eu acorde num dia e não me lembre de que seja gay, basta pôr o pé fora de casa, a sociedade vai fazer questão de me lembrar que sou gay. Os comentários das pessoas e as situações na rua chegam até ao sítio ou local em que me tenha de dirigir. Para ver mais ou menos o tipo de diferença, faz mais ou menos uma semana desde que cheguei de Portugal e quando lá estou, mesmo parado num sítio, sou um indivíduo mais no meio de tantos. Mas aqui é um pouco sufocante eu parar num sítio, por causa dos comentários bons e maus. Não é possível ser mais um no meio das pessoas, porque há sempre alguém que tenta evidenciar aquilo que sou.

O facto de se ter formado a associação Íris, agora reconhecida pelo Estado angolano, conseguiu reverter a forma como são vistos os gays, lésbicas e transsexuais no país?

Eu creio que alguma coisa mudou, mas não começa só daí. É um processo que já vem de trás. De princípio era um trabalho feito para nós, mas quando decidimos sair para fora e falar com aqueles que chamamos decisores, isto é, as pessoas que estão no Governo e noutros sítios preponderantes, vai dar este resultado. Escolhemos primeiro a saúde, porque quando entramos para trabalhar neste sector vamos encontrar vários decisores, como os ministérios da Saúde, da Justiça, da Educação e da Família. De certa forma, isto abriu um diálogo entre os vários sectores, o que vai culminar com a própria legalização da associação e a posteriori a descriminalização da homossexualidade. Tudo isso é resultado de anos de trabalho, não é algo feito por uma pessoa singular.

Numa entrevista que concedeu em tempos dizia que ‘tinha sido criada a associação no sentido de se quebrar o preconceito que ainda existia na sociedade’. Mantêm a mesma ideia?

O problema em Angola é o seguinte: o ser gay não é muito difícil em caminhar na rua e na minha própria segurança não há assim um receio, embora existam as agressões verbais e às vezes as físicas. Muitas coisas mudam quando é na família de alguém. A percepção das pessoas é que ‘respeito, ainda acho graça, ou falo mal’. Mas quando já é na nossa família, as coisas mudam muito. Então, ainda tentamos resolver esta questão do preconceito. Sabemos que é algo que não vamos conseguir fazer sozinhos. Por exemplo, como é que vou ajudar um jovem de 14 anos que está dentro da sua casa a sofrer violência dos seus pais? Eu, como organização, ainda não tenho um leque de parceiros que possam proteger isso tudo. E quando falamos disso mencionamos o Ministério da Criança, da Família e até o próprio UNICEF, porque nós sozinhos não vamos conseguir convencer um pai ou uma mãe de um adolescente que não adianta agredir o seu filho devido à sua orientação sexual. Não adianta estar a limitar a liberdade deste jovem por causa disso, porque ainda há um medo sobre o que os outros vão pensar quando souberem que o meu filho é gay. Às vezes, o problema não está em nós ou na própria família, mas sim na aceitação dos outros, porque muitas vezes os pais sentem-se sufocados. Por isso, estamos a trabalhar contra o estigma e o preconceito, porque muitos deles são causados pela falta de informação dos próprios pais e da sociedade no geral, que tem o seu próprio conceito do que é a homossexualidade.

Qual é o conceito que as pessoas em Angola têm da homossexualidade?

A primeira visão que tenho é que a ideia inicial é que todo o gay quer ser mulher ou uma imitação de uma mulher, assim como ficam focados na forma como faço sexo. As pessoas, quando olham para mim não vêm o Carlos, mas sim a forma como eu faço sexo. Isso continua a ser um rótulo e cria impedimentos para se conhecer as pessoas. Cria logo uma barreira, a ideia de que ele é gay e quer ser mulher não vai chegar, mas a liberdade de conhecer porque pensa que sou gay e, se falar com um hetero, ele vai querer me conquistar. Isso cria logo uma ideia um pouco deturpada do que é ser gay e o que nós, enquanto comunidade, queremos ou somos.

Então ajude-nos a perceber: quem é gay?

Um gay é uma pessoa que sente atracção afectiva por outra pessoa. A relação entre as pessoas não são baseadas em sexo mas sim em sentimentos. Então, o que tento explicar é isso: eu posso mudar o meu comportamento sexual, posso deixar de ter relações sexuais, mas afectivamente não tenho como escolher a quem gostar. Não é uma escolha minha, é algo incutido no ser humano e que acontece. Senão, todo o mundo ía escolher uma pessoa rica e não seria aquilo que chamamos amor, que nasce directamente nas pessoas. O que pretendo é que as pessoas entendam que ser gay é apenas um detalhe da minha vida. Noutras coisas eu faço e tenho as mesmas obrigações que qualquer outra pessoa na sociedade. Tenho que trabalhar, pago os mesmos impostos e tudo o que é obrigatório numa sociedade dita normal, mas ainda tenho que superar esta barreira de ser diferente, embora cobrada a mesma coisa que os outros.

Qual seria a palavra ideal na questão do homossexualismo?

A palavra ideal é respeitar a orientação sexual de alguém ou a diversidade  de pessoas que existem no mundo. Quando falo de direitos, até porque trabalho com direitos humanos, nunca vejo os direitos dos gays e das lésbicas como um direito isolado. Quando estamos a falar em direito, estamos a falar num todo. Eu, como sou luso-africano, tive mais facilidade com a minha família portuguesa que a angolana. Levei um processo um pouco difícil, porque sabemos que em África iremos lutar contra o que é imoral e o que é a tradição africana. Eu creio que no fim de tudo o que prevaleceu é o indivíduo na minha família. Acho que chegou um ponto em que viram que temos que olhar para o Carlos em si. Depois de muitos anos, sinto que eles é que cobram a minha pessoa para estar com eles. Alguns dizem que afinal aquela questão da homossexualidade é um detalhe, porque eu como pessoa tenho mais para oferecer ou dar.

A história do Carlos não é semelhante a de muitos outros casos que chegam à Irís?

Não é.

Quais são os relatos que têm recebido?

Ouvimos casos desde a limitação de liberdade quando é um pouco na adolescência. Há a ideia de escola casa e casa-escola. Quando se fala das lésbicas há a pressão de elas terem filhos, porque depois já não há tanta pressão familiar. Também, às vezes, há expulsões de casa. Já houve casos de pessoas que foram sub-metidos a tratamentos tradicionais. Nunca é fácil. Há uns que são postos fora de casa pelos pais. Alguns encaminho para uma organização que tem uma casa de acolhimento e outros coloco-os na minha própria casa. Estou a falar apenas de Luanda, porque se formos para o Norte de Angola as pessoas e as reacções são mais duras.

O que se passa no Norte de Angola?

É mais duro ser gay em Cabinda do que em Luanda ou Benguela.

O que aconteceria a um gay em Cabinda em relação aos que estão em Luanda?

Dou-lhe um exemplo: em Luanda ando de mãos dadas com o meu parceiro na rua, porque não tenho medo da reacção das pessoas. Mas, certamente, em Cabinda as pessoas não se sentem confortáveis serem abertamente gays ou lésbicas por causa da repressão. A forma como está construída a nossa sociedade tem impacto na comunidade em que vivemos. Às vezes, as pessoas se escondem para não sofrerem este impacto da comunidade em que vivem.

Há muitos casos de miúdos que fogem de casa por causa das represálias?

Eu tenho dito que uma parte boa das coisas é que a lei avançou, mas nós próprios, associação, e a estrutura … não avançou ainda.

O que pretende dizer?

Hoje em dia temos leis que punem quem viola os nossos direitos. Também tínhamos que ter sistemas que apoiassem isso. Quando lhe falo da criança que está a ser discriminada dentro de casa, o próprio Ministério da Família e Promoção da Mulher, o INAC, têm que entender que uma violência baseada na orientação sexual de um adolescente fere o direito da criança. Enquanto ainda não conseguirmos juntar isso, há quem pense que talvez o pai devesse ajudar a endireitar aquela criança, porque pode ser ‘só uma fase’. Ainda não há um casamento entre as coisas, para que não aconteça como no Brasil. No Brasil há leis bonitas, mas o povo não entende as referidas leis. É este o trabalho que agora precisamos. Já temos os mecanismos, agora deve-se começar com uma educação no povo e nas famílias para que entendam e respeitem as pessoas. Não é aceitar, mas que respeitem para que não batam nem matem. Não queremos leis específicas para nós, como se fossemos seres humanos diferentes, mas sim mecanismos para punir quem fere estes direitos.

Há pessoas que ainda julgam a homossexualidade como moda. Há uma idade em que as pessoas já sentem que sou gay, lésbica ou que a minha orientação sexual é diferente de um hetero?

O próprio ser humano, mesmo não sendo gay ou hetero, leva algum tempo para compreender. O que nós como sociedade temos que entender é que da mesma forma que não ensinas o teu filho a ser hétero, ninguém ensina o seu filho a ser gay.

Há quem se tenha tornado gay por influência?

Não. Não sei de ninguém que tenha sido gay por influência.

Pode ser uma questão anormal, mas são os tabus que ainda existem na sociedade, por isso gostaria que nos ajudasse a compreender.

Sim, compreendo. Ontem vi uma notícia onde se dizia que um gay de 15anossuicidou-se. Quando via notícia, a primeira coisa que me veio à cabeça foi que as pessoas costumam usar ou dizer que ‘eu é que escolhi assim, eu é que optei’. Será que se fosse uma escolha, este jovem que se matou não ia preferir deixar de ser do que optar por acabar com a sua vida? Então, é algo que está dentro da própria pessoa. O que as pessoas não têm consciência é que quanto à homossexualidade notas desde criança. Muitas vezes, estas crianças têm medo que os seus pais saibam, então faço o necessário: controlar tudo o que falo e penso. Tem-se uma vida de dupla personalidade. É uma criança que tem medo do que vai ser no futuro, porque desconhece qual será a reacção dos seus pais. É um processo solitário, não pode dividir com alguém o que está a passar, por isso disse que as pessoas fogem cedo de casa. Descobrem outros gays que vivem confortavelmente com a sua orientação sexual e sonham ter esta vida sem pressão, medo e perder a própria família. A família também, às vezes, diz que não te aceito assim, mas respeito. É triste quando se diz: ‘eu te amo, mas aquele detalhe não’. Sente-se que a pessoa não te ama como um todo.

Falou da dupla personalidade, mas há um termo que é muito usado, mas desde já vai o nosso pedido de desculpas caso não goste, ainda há muita gente que demora a ‘sair do armário’ por causa desta dupla personalidade?

Há vezes em que tem a ver com alguma pressão social. Conheço jovens que se sentem mulher, mas por causa da faculdade, por saber que os pais vão parar de pagar, preferem sufocar o que são, por causa desta questão questão da educação e da exclusão. A vida em si é que obriga as pessoas a terem dupla personalidade para não perderem algumas das partes que mencionei. Mas nem todos é dupla personalidade. Por exemplo, vou assumir porque que sou homossexual, se nenhum hetero também se assume como tal?

Há vários membros da associação que ainda não assumiram a sua condição sexual?

Sim, há vários, entre os assumidos e não assumidos. Nós entendemos, como lhe disse, temos que medir sempre o impacto disso na vida da pessoa. Quanto a mim, interessa como organização o apoio que queremos dar às pessoas. A prioridade é sempre comunidade. Quando vou para ajudar não vejo em que condições.

A associação está representada noutras províncias?

Nós estamos em Benguela, Huíla, Huambo e Luanda, mas em diferentes contextos. Nas outras províncias, exceptuando Luanda, estão ainda naquela fase de iniciação como nós começamos para a própria comunidade. Aqui em Luanda fazemos advocacia nacional como internacional.

Quantos membros tem a associação neste momento?

Assim imediatamente não lhe consigo dizer.

O número de membros tem aumentado ou diminuído?

Posso dar uma ideia, não de números, mas das pessoas envolvidas. Antes, nós tínhamos uma equipa de 12, mas agora temos mais de 40. Hoje há outros movimentos que também acabamos por absorver.

Quais são estes movimentos?

Como sabe, a LGBT é composta por várias letras. Temos movimentos específicos para algumas letras, outros para questões de saúde. Somos como um guarda-chuva, mas outros trabalham para grupos específicos dentro de nós.

Disse que alguns dos jovens vêm ter com a associação. Neste caso, a associação tem feito advocacia junto das próprias famílias destes jovens?

Junto das famílias é um pouco mais difícil. Apesar de hoje em dia existirem mecanismos de punição, não há uma garantia se eu depois de falar contigo, sobre um filho gay, não irá piorar ainda mais a situação do mesmo. Também não há uma garantia de que eu vá falar contigo e não me faças mal. É aqui que se teria que usar os sistemas punitivos para reprimir. A nossa ideia é não usar as coisas para intervir, mas sim para evitar. Para isso, temos que ter outros parceiros que façam isso connosco. O diálogo com a família não pode ser só feito por nós associação de LGBT. Tem que haver apoio do próprio Ministério da Família e da Mulher, que reconheça que existimos e estamos a passar estes problemas dentro das nossas famílias. Em Angola, as primeiras pessoas a nos descriminarem são da própria família. Isso depois acarreta o resto de todos os problemas. Se for ver alguns dados de saúde, dados de seroprevalência, vais ver que os indicadores acesso à educação e à saúde são muito baixos. Então vais ter um número muito alto de abandono da escola, pouco acesso ao emprego e à saúde, o que vai fazer com que esta população sofra mais de VIH do que a população no geral. Se você não tem educação, emprego, mas com estigma e discriminação na tua família, você torna-se uma pessoa muito vulnerável em relação ao aspecto de transmissão de doenças, porque a tua protecção sexual vai ser a última coisa em que vais pensar. Não encontras atenção, carinho nem suporte em algum lado.

Já tiveram casos de familiares que vieram ter à associação por não gostarem do apoio que têm dado aos seus parentes?

Não. Falamos com os jovens e sabemos quais são os comportamentos sendo ou não gays, porque não diferem muito dos mesmos problemas que outros jovens sofrem. Já tivemos situações de pais que procuraram por nós porque os filhos diziam que vinham nas actividades da Íris. Mas vinham mais para ver se os filhos estavam na Íris ou não. Mas nunca na ideia de serem contra.

É muito difícil para um gay conseguir emprego?

Eu creio que para a população no geral é muito difícil, mas quando há aquelas barreiras na educação aumentam mais. Quando tens um nível educacional baixo, as oportunidades de emprego também são menores.

Diz-se também que a comunidade LGBT tem um espírito empreendedor muito grande. Trata-se de um espírito de sobrevivência ou é algo que nasce mesmo já dentro de um gay?

Alguém uma vez me disse o seguinte: ‘só um gay sabe o quanto é difícil ser gay’. Muitas vezes ando na rua e não me incomodo, mas é preciso ter um poder de encaixe muito grande. Imagine todos os dias a mesma pressão e os mesmos comentários! A diferença é que às vezes enfrentamos isso com um sorriso. No campo ‘empreendedor’, por causa deste espírito temos alguma queda para coisas como a arte, cultura, mas dentro da sociedade angolana temos LGBT em vários lugares.

Há muito espírito de entre-ajuda?

Sim. Quando algum indivíduo da comunidade sente ou precisa de algo recorre a nós. Quando falamos do Huambo, por exemplo, no ano passado tivemos um LGBT que era portador do VIH e estava com tuberculose. Foi abandonado. A própria comunidade juntou-se para comprar comida, tirar-lhe do local em que se encontrava para fazer consultas e o internamento. O mais triste é que ele acabou por morrer. Para piorar ainda mais a tristeza, no dia seguinte a família conseguiu dinheiro e enterrou- lhe logo. A pessoa passa meses no hospital com problemas de alimentação, mas ninguém se importa. Mas quando se morre, no dia seguinte é enterrado.

‘As pessoas têm sempre algum versículo da Bíblia para nos atacar’

Como é que viram o facto de o novo Código Penal já não criminalizar a homossexualidade?

De certa forma, já tínhamos conhecimento de que isso iria passar.

Como assim?

As pessoas pensam que é um processo novo e algo gerado por este Governo. Não é. O caso do Código Penal vem do antigo Governo e é algo que já vinha a ser revisto há algum tempo. Já tínhamos conhecimento do que estava escrito. Estávamos à espera não é só que se retirasse a lei de 1889 que criminalizava, mas também os mecanismos que punissem quem viola os nossos direitos.

Há outros aspectos que gostariam de ver alterado na legislação?

Quando se fala, por exemplo, nos mecanismos de punição, nós vimos que aborda apenas a questão da orientação sexual mas não a identidade do género, isto é, quando acho que nasci com um sexo diferente da identidade que sou. Não há uma protecção, ou seja, de certa forma é um impedimento. No contexto africano, quando se fala da comunidade gay, as pessoas têm logo aquela ideia de casamento e adoptar filhos. Não digo que não são importantes, mas as mais gritantes não são estas. É a família nos discriminar e as barreiras que temos no dia-a-dia. Se ainda não conseguimos ter uma vida normal, então não é essencial pensar no casamento. Se ainda não tenho um respeito da sociedade, como é que vou conseguir cobrar aos meus filhos ou fazer com que a sociedade me respeite e aos meus filhos?

Tem um parceiro?

Sim, tenho um parceiro.

Pretende casar-se no exterior, naqueles países em que se aceita o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou acredita que seja possível um dia em Angola?

Primeiro, quando se fala do casamento temos que ver dois aspectos. Quando se fala do casamento, a ideia que existe é heteronormativa. As pessoas têm aquela ideia da coisa bonita, da festa e isso tudo. É o que se pensa que nós homossexuais queremos, mas não é. As pessoas têm que ter noção do seguinte: eu tenho um parceiro, a sociedade aceitando ou não, estou a construir uma vida com ele. Agora pense, se vivermos 10 ou 20 anos e eu morrer? Você que fez a vida comigo, construímos as coisas juntos, é justo não ter direito a nada, porque a minha família não lhe vai dar este direito? Quando se fala em casamento, estas são algumas coisas que queremos salvaguardar. Quando se fala por exemplo dos filhos, há muitos casais LGBT que têm filhos de outros relacionamentos antigos, mas vivem juntos. Que direitos vou ter se viver contigo seis ou sete anos, temos um filho em conjunto, mas não queres que eu veja mais a criança? São estas coisas que vemos quando falamos do casamento, mas as pessoas pensam que, como sou gay, quero pôr um vestido de noiva. Não é. Nós queremos salvaguardar alguns direitos que os casais heteros também pretendem salvaguardar. Tudo o que um hetero tem, então nós devemos ter os mesmos direitos e privilégios. Não tem nada a ver com o se é moral ou tradição africana. É direito garantido pela lei de que um indivíduo tem direito a isso.

Tocou pela segunda vez no termo tradição africana. Este facto ainda pesa muito para a comunidade LGBT?

Sim. Às vezes, o nosso problema é pensarmos que tudo é novo, as coisas só estão a acontecer agora e que há muitos anos não existia. Daí alguns dizerem que ser homossexual não é algo que vem de África, foi o estrangeiro que trouxe. Se virmos isso internamente, vamos ouvir por exemplo que ‘nós os bakongos não aceitamos isso, porque é contra os nossos princípios’. Ao contrário dos outros LGBT ao nível do mundo, muitos só têm o problema da religião, em que os cristãos são contra ou os muçulmanos também. Em África temos os cristãos contra nós, os muçulmanos e também a tradição africana. O que pesa. Apesar de aqui em Angola ser um pouco mais soft, em muitos países de África chega- se ao ponto de os gays não poderem ser enterrados em cemitérios. Desenterram-te porque a população acha que por ser gay não é digno de estar ao lado dos seus antepassados por causa desta ideia da tradição africana.

A posição da Igreja Católica ainda é incómoda?

Quando ouvimos o que o Papa Francisco vai dizendo, vimos que há uma abertura da própria Igreja Católica. É um processo.

O actual Papa é mais aberto?

Além de ser mais aberto, na minha visão pessoal tenho analisado o seguinte: a Igreja foi feita para os pecadores. Se se fechar as portas para os pecadores, onde é que as pessoas irão passar?

O que quer dizer com isso?

Tudo. Não existe na terra alguém que seja santo. Todo o mundo peca. A Igreja foi feita para as pessoas pecadoras lá irem se santificar ao longo dos tempos, mas não podemos escolher se este é ou não digno. Nós já somos renegados na sociedade, na família, na educação, será que até Deus vai nos renegar? É algo que temos que repensar.

Já sentiu em algum momento que até as portas de Deus lhe estavam a ser encerradas?

Normalmente, vejo que as pessoas têm sempre algum versículo da Bíblia para nos atacar. Dizem que somos aberrações e um leque de nomes. Portanto, eu posso ser gay, mas acredito na compaixão de Cristo. Na última ceita, Jesus estava com Judas na mesa a comer. Jesus sabia que Judas seria o responsável pela morte dele, mas ainda assim compartilhou a santa ceia com ele. Poderia ter dito: ‘não quero, vou morrer por culpa dele ou ele irá parar no inferno’. É mais ou menos nisso em que me fixo: em Jesus.

Essa crença fortalece a vossa luta?

Como já lhe disse, viu a quantidade de barreiras que nós ultrapassamos? Vou-lhe dar um exemplo: eu já fui espancado, atirado numa obra sem roupas, com pessoas na rua. Se não acreditasse em Deus, será que hoje estaria vivo? É mais ou menos a mesma ideia, sempre que saio de casa fico a pensar se não vai aparecer um louco que não gosta de mim e bater de repente por aquilo que sou? Se não tivesse ou não acreditasse neste Deus, não teria esta coragem de todos os dias sair.

Durante algum tempo fizeram um estudo sobre as condições de vida dos integrantes da comunidade LGBT. A que conclusão chegaram?

O estudo não é sobre as condições de vida, mas vamos ter os indicadores de que lhe falei: a educação, emprego e acesso à saúde. Em tempos fizemos um projecto desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e outros parceiros regionais que identificaram algumas barreiras que dificultam a vida dos LGBT no acesso à saúde.

Os dados são animadores?

O problema continua no estigma e na discriminação no seio da família e que são gritantes. Às vezes há também a nossa própria incapacidade de poder ajudar as pessoas que estão no Huambo ou noutro ponto do país. Aparenta ser tudo normal, que as pessoas não sofrem grandes coisas, mas acontece. Há duas ou três semanas, uma menina foi agredida num bar com uma garrafa no pescoço e quase que ia perdendo a vida. Na outra semana recebi um outro jovem. Em casa descobriram que era gay e começaram a espancar-lhe aí mesmo, depois colocaram-lhe fora e os vizinhos também ajudaram a espancar.

Há muitos membros da comunidade como profissionais do sexo?

Não muitos. Existe um grupo conhecido como as ‘mulheres trans’ ou ‘travestis’ mas isso muitas vezes é associado à falta de oportunidades. Já é difícil a família aceitar um gay, mas o mais difícil é aceitar um gay que quer ser mulher. A maior parte deles é posta na rua. Então, por causa da sua situação de género, as pessoas não as contratam para trabalhar. Não entram na educação por causa da forma como se apresentam. Não conseguem tratar o bilhete porque têm que mudar a aparência ou cortar o cabelo, mas elas não querem. Isso cria um leque de barreiras que faz com que algumas recorram ao trabalho de sexo.

Os problemas na comunidade LGBT são transversais ou há um segmento em que mais se destacam?

Eu creio que a questão é o quão visível tu és. Ser trans é logo um problema, porque eu ser gay e não demonstrar ainda se pode esconder. Quando sou trans já se nota e torna- se mais grave. Se eu for lésbica e andar com uma mulher de mãos dadas na rua, as pessoas que virem nem lhes passara pelas cabeças que elas sejam lésbicas. Podem pensar que são duas amigas. Agora, se for eu e o meu parceiro de mãos dadas, vão logo pensar: não é normal vermos dois rapazes de mãos dadas.

Há uma associação reconhecida, tiveram apoios internacionais e os projectos vão sendo desenvolvidos. Já pensaram na realização de uma ‘parada gay’ em Angola?

É uma pergunta que a própria comunidade me faz. Eu respondo que irá acontecer no momento certo. Creio que há outros passos, porque o foco que a os meios de comunicação social deram às marchas tirou o seu valor político. A midia desgastou tanto a imagem das marchas que as pessoas pensam que uma marcha gay é para as pessoas irem à rua e estarem aos beijos. Quando falo com a comunidade, eu digo que há um caminho a percorrer. Este ano faz 50 anos do movimento no mundo, as pessoas voltaram a perguntar se teremos. É preciso continuar a educar a população. Já temos uma marcha que aos poucos tem dado visibilidade à comunidade, que é a marcha do VIH. Tenho dito à comunidade que quanto mais visibilidade ganharmos dentro desta marcha, talvez possamos sair daí. Por enquanto, o ideal é criar eventos aberto socialmente para as pessoas irem, compreender e entender. Até porque marcha é um direito garantido pela própria Constituição. Para não fazermos como a África do Sul em que todo o mundo faz marcha para alguma coisa.