Escravatura e reparações: Ta-nehisi Coates ouvido no Congresso americano

POR:  Ricardo Vita

O famoso jornalista e escritor americano, Ta-Nehisi Coates, é um defensor incansável das reparações devidas aos negros americanos pela escravatura que sofreram nos Estados Unidos. Na sua longa reportagem, publicada em 2014 sob o título de « Th e Case for Reparations », deu as bases que certamente servirão de referência na discussão nacional sobre as reparações que começou no passado dia 19 de Junho no Congresso americano.Começar esse debate nesse dia simbólico, « Juneteenth », destaca o duplo propósito do feriado: celebrar a emancipação, mas também exigir responsabilidade por erros históricos e presentes.O Juneteenth, ou o Dia da Emancipação, é um feriado nacional nos Estados-Unidos, que tem lugar todo dia 19 de Junho de cada ano, em memória ao dia do ano de 1865 em que foi anunciada a proclamação de emancipação de escravos no Texas e que depois todos os estados confederados do sul do país seguiram. Com o habitual brio e relevância dos seus escritos, Ta-Nehisi Coastes demonstrou mais uma vez a hipocrisia dos Ocidentais quando respondeu à declaração do senador Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado.De facto, McConnell percebe a escravatura como muitos Ocidentais percebem. E sobre as reparações, declarou, um dia antes da audição de Coates, que « os EUA não devem ser responsabilizados por algo que aconteceu há 150 anos, uma vez que nenhum de nós actualmente vivos é responsável ». A banalizada réplica esteve na linha de mira de Coastes durante o seu depoimento e disse ao Congresso, recordando aos supremacistas batoteiros, que a história é um bumerangue – que ela não deixa somente privilégios – e que essa réplica é uma teoria estranha na me- RICARDO VITA* dida em que nenhuma acção feita por um governo acaba com o fim da vida dos que a realizam. Lembrou aos amnésicos que os Estados Unidos ainda estavam a pagar pensões aos herdeiros dos soldados da Guerra de Secessão que aconteceu há 154 anos, que honravam tratados assinados há 200 anos, bem que ninguém dos que estão vivos hoje os tivesse assinado.Em suma, Coates respondeu a McConnell que a vida seria bem boa se pagássemos apenas pelas coisas pelas quais somos responsáveis individualmente. Infelizmente, acrescentou, sendo cidadãos de um país e, portanto, ligados a um projecto comum que vai além do ego de cada um deles, tal réplica é irresponsável. Como Coates, penso que o Contrato Social de um povo também deve reconhecer e assumir os seus deveres, como faz com os direitos e privilégios que o passado deixou; isto chama-se herança, e não se pode imaginar a América sem a herança da escravatura. A escravatura moldou todos os aspectos cruciais da economia e da política americanas.Em 1836, quase metade da actividade económica do país derivava directa ou indirectamente do algodão produzido por milhões de escravos. No momento em que os escravos foram emancipados, eles compunham o maior activo na América. A demonstração de Coates permitiu explicitar que o método de conservação desse activo era a tortura, o estupro e o tráfico de crianças. A escravatura reinou durante 250 anos nos Estados Unidos, e quando terminou, o país poderia ter estendido os seus princípios sagrados (a vida, a liberdade e a busca da felicidade) a todos, independentemente da cor.Mas a América tinha outros princípios em mente. E assim, por um século após a Guerra Civil, os negros foram submetidos a uma campanha implacável de terror, uma campanha que se estendeu até a vida do senador McConnell, que nasceu em 1942. É de facto tentador divorciar-se da moderna campanha de terror, pilhagem, escravatura, mas a lógica da escravatura, da supremacia branca, não respeita fronteiras e ela gerou muitos herdeiros. Golpes de Estado. Arrendamento de condenados. Leis de vagabundagem. Escravatura por divida. Redlining (a prática discriminatória e racista de recusar ou limitar empréstimos bancários a populações em áreas geográficas específicas). Leis racistas contra veteranos negros da Segunda Guerra Mundial. Terrorismo patrocinado pelo Estado.O senador McConnell estava vivo para ver a cleptocracia no seu Alabama natal e um regime baseado em roubo eleitoral. Estava vivo para testemunhar o assédio, a prisão e a traição dos responsáveis de direitos civis por um governo que tinha jurado protegê-los. Estava vivo para o redlining de Chicago e a pilhagem de proprietários de imóveis negros (por cerca de 4 bilhões de dólares). As vítimas desse saque estão ainda vivas. Coates disse que o Congresso deveria saber que, enquanto a emancipação fechava a porta contra os bandidos da América, Jim Crow fechava as janelas. Recordou ainda que a família típica negra americana hoje tem um décimo da riqueza da família típica branca.As mulheres negras morrem quatro vezes mais que as mulheres brancas durante o parto. E há vergonha, de facto, desta Terra- quese- diz-Livre, de ostentar a maior população carcerária do planeta, da qual os descendentes dos escravizados constituem a maior parte. A questão das reparações é uma questão que visa corrigir directamente os danos causados por esses crimes, mas também é uma questão de cidadania. Além das desculpas que o Congresso pediu em 2009 pela escravatura, tem agora a chance de dizer que a nação americana deve assumir da mesma maneira os seus créditos e os seus débitos. Que se Th omas Jeff erson, o expresidente, é importante, Sally Hemings, a sua escrava negra, a quem deu 6 fi lhos ilegítimos, também é.Que se o Dia D, dia do início da operação que liberou os territórios europeus ocupados pelos nazi, é importante, Black Wall Street, o bairro autónomo da comunidade negra, que tinha uma economia fl orescente nos anos 1910 na cidade de Tulsa e que os terroristas da supremacia branca queimaram em 1921, também é. Porque a questão realmente não é se estaremos ou não presos às coisas do passado, mas se somos corajosos o sufi ciente para estarmos ligados a « Todo- O-Passado ». « Se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra », lemos em 2 crônicas 7:14 na sagrada Bíblia, que McConnell deve certamente venerar; é uma herança – que assume – legada pelos seus antepassados e que a outra herança – que hoje rejeita – impôs aos negros. Mas esqueceu provavelmente este capítulo, como muitos, são cristãos quando lhes convêm. A escravatura e a colonização foram crimes contra a humanidade e as vítimas ainda sofrem das consequências.Como tais, as reparações – além da legitimidade jurídica – são devidas moral, histórica e politicamente. Todos os países que beneficiaram desses crimes pagarão no momento certo. A África pedirá reparações sem rodeios quando tiver sociedades civis actuantes, que perceberão o que está em jogo. Quando ela vasculhar na sua história, aprender sobre os seus esplendores, gostar de ser africana. E contará a sua versão da História quando for dirigida por aqueles que entenderem a perfídia da emboscada, aqueles que tirarão das suas ruas os nomes coloniais e que reconhecerão a sua energia vital e força espiritual; mulheres e homens atentos às dinâmicas do mundo, que perceberem que o Ocidente tem razão em defender os seus interesses antes dos de outros – porque, para os Ocidentais, « o homem é o lobo do próprio homem »; este é o valor que os guia. Então esses dirigentes emancipados e dedicados ao bem da África defenderão também os seus interesses, porque terão entendido que o que sai da boca de um branco nem sempre é inteligente nem a verdade, que há brancos incultos e estúpidos, porque são seres humanos. Daí, só daí, os Africanos serão verdadeiramente livres e mestres do seu destino e poderão ir a busca dessa justiça adiada; para os piores crimes da história – que foram cometidos e que continuam a ser cometidos – contra negros no continente e fora. E, felizmente, já há indícios desta vontade.A geração do meu pai lutou pela liberdade do negro, apesar das insuficiências, a minha lutará pela sua dignidade. Teremos uma cabeça bem nossa, inexoravelmente; uma cabeça mais humana, que dirá que o princípio de « o homem é o lobo do próprio homem » é tolo – é um valor indigno e desumano -, esta será uma cabeça benéfica para todos os homens da terra, porque sofreu injustiça no seu corpo e na sua alma, por isso propagará o Ubuntu, o humanismo para com os outros.