Estudante leva professora a tribunal por causa do cabelo e da barba

Estudante leva professora a tribunal por causa do cabelo e da barba

A relação de aluno e professor, entre Yele Kengue Geraldo e Anabela Cunha, começou em 2016, no 3º ano, quando esta leccionava a disciplina de Prática Docente I. O cabelo (sem tranças) e a barba de Yele, bem como de dois outros colegas seus, não constituíam qualquer preocupação e, evidentemente, o aluno passou, sem sobressaltos, de ano.

Desde 2014 que está no ISCED e nunca recebeu qualquer advertência por parte de algum docente sobre o cabelo e barba. Yele sempre se apresentou com trajes africanos, missangas e sempre defendeu, obviamente, a africanidade, a negritude e a sua cultura. Em 2017, já no 4º Ano, novamente com a professora Anabela Cunha, agora na disciplina de Prática Docente II, até antes do mês de Outubro a relação estava boa. Foi nesa altura, quando começou o estágio na escola pública 14 de Abril, na Centralidade do Kilamba, que se levantou a questão do cabelo e da barba. A direcção da escola em que estagiava chamou a atenção à forma como se apresentavam Yele e mais dois colegas e orientou a professora que lhes pedisse para cortar a barba e o cabelo. “A Subdirectora pedagógica da 14 de Abril disse que se quiséssemos continuar a estagiar tínhamos de cortar o cabelo e a barba, porque é o regulamento daquela instituição pública.

Entrei em contacto com o chefe do departamento de História, sr. Bruno, que disse não existir no regulamento do ISCED esta proibição, mas que cada escola tem as suas normas internas”, explicitou. Apesar daquela resposta, Anabela Cunha, no dia seguinte, na sala de aula, chamou à atenção Yele, principalmente, fazendo-lhe um sermão contra o seu perfil na presença dos colegas, que o nosso entrevistado considera humilhante. Tudo isso porque os dois outros colegas decidiram cortar o cabelo e a barba, mas Yele não, e insistiu na questão da defesa da sua identidade. Foi expulso da sala de aula. Dali, foi conversar com a subdirectora pedagógica da 14 de Abril e, depois de 40 minutos de diálogo, esta rendeu- se e mostrou estar a entender a sua filosofia, tendo aceitado que permanecesse no estágio sem cortar a barba e o cabelo. “Ao cruzar-me com a professora no ISCED, expliquei-lhe o quese tinha passado e ela disse: ‘Yele, tu és muito teimoso. A partir de agora, eu é quem quer que cortes o cabelo e a barba. Se assim não fizeres não vais assistir às minhas aulas’. O caso foi-se estendendo, o chefe do departamento disse que ia resolver, mas não resolveu, eu não assistia às suas aulas, não fiz a prova e acabei deixando cadeira”, acrescentou.

Problema de luta de egos

Aquela foi a única cadeira em que reprovou desde que entrou no ISCED, nunca tinha deixado qualquer cadeira em atraso ou tido um mau desempenho. Disse ainda que o director do departamento lhe confidenciou ter havido uma reunião de professores em que foi levantado o seu caso e, apesar de os outros professores terem achado normal que o aluno use cabelo e barba, a professora Anabela foi insistente em dizer que não ia recuar na sua decisão porque “o Yele é rebelde”, por ser o único a não aceitar cortar o cabelo e a barba. Escreveu para a directora do ISCED, que em conversa com Yele chegou a levantar a existência, nos anos passados, de um regulamento interno que proíbe o uso de cabelo e barba compridos, mas que actualmente não se faz sentir, pois têm, na instituição, professores que se apresentam com cabelo e barba compridos. “Então, o teu problema com a professora é de luta de egos”, concluiu.

Para solucionar o problema, a directora disse que entraria em contacto com a professora Anabela, a fim de Yele poder ser avaliado por um outro professor, mas passados dias e, depois, meses, nunca teve uma outra resposta da directora. Yele deixou de confiar na direcção do ISCED e decidiu levar o caso ao tribunal. “Eu não vou cortar o meu cabelo e a barba pelos caprichos da professora Anabela Cunha. Isto tem a ver com a minha identidade e ela não pode violar isso”, reforçou o estudante, que ficou condicionado a terminar o curso de história por causa de uma disciplina não concluída. Assim, pediu transferência para a Escola Superior do Bengo, onde irá terminar o curso em 2020. A professora, segundo Yele Kengue, será processada por discriminação e pelos danos causados à sua pessoa, uma vez que teria terminado a licenciatura dois anos antes. Yele Kengue (significa fui fechar, na língua Kikongo) é escritor e artista plástico.

“Não é verdade e Yele está a agir de má-fé”

No direito de resposta, de 30 de Junho, enviado às redacções, Anabela Cunha disse estar a ser vítima de calúnia por parte de Yele Kengue, situação que atenta contra o seu bom nome, a sua reputação e a sua imagem. O que Yele apresenta são “factos eivados de inverdades e está a agir de má-fé”, porquanto, na altura dos factos apresentava-se com cabelos compridos e tranças. O estudante tem o direito de sentir-se discriminado nos seus direitos fundamentais, mas “tal discriminação não parte da minha modesta pessoa”, defende a professora. Anabela disse que os regulamentos do ISCED não estabelecem exclusão estética em termos de apresentação dos estudantes e, por isso, Yele, em 2016 realizou as práticas (simuladas), no ISCED, e transitou de ano.

No 4º ano teve um entrave, não da parte do ISCED, mas do Liceu 14 de Abril, quando, pouco depois do início do estágio, o director da instituição me chamou à atenção, através do professor titular da turma, pelo facto de os estudantes apresentarem-se de forma indecorosa – o que viola as normas, regras e regulamentos internos da escola. “Tal observação consistia, fundamentalmente, no tipo de indumentária usada pelos estudantesestagiários (indecente à luz dessas normas), pelos cabelos e barbas compridos e pelas tranças). A direcção advertiu-me que, ao continuar tal prática, aos estagiários nessa condição não lhes seria permitido o acesso à instituição”, lê-se, no documento. A professora confirma ter chamado à atenção Yele e outros estudantes nesta condição, no sentido de se pautarem pela observância do regulamento da instituição receptora. Maurício Salohoca (Mauro Sutak, cantor de Rap), seu aluno, acatou a chamada de atenção, e terminou o curso, ao contrário de Yele Kengue Geraldo. “O estudante, insatisfeito, recorreu à direcção da instituição dias depois e informou-me que foi autorizado pela mesma no sentido de voltar a fazer o estágio. Diante disso, solicitei um documento por escrito sobre a referida autorização, que não apresentou. Optou em proferir impropérios e calúnias contra a minha pessoa e meu bom nome”, finalizou.

Problema pode não estar no cabelo

Abreu Paxe, chefe do Departamento de Línguas e Literaturas africanas do ISCED, ao intervir no programa Krukutekas do meu Bairro, da Rádio Mais Luanda, começou por dizer que este não é um assunto em que se pode criar um drama como tal, pois não compreende como é que ele (como professor efectivo do ISCED) usa cabelo e barba do padrão que Yele Kengue usava e não tem problemas em leccionar

Não é possível a direcção do ISCED, que o nomeou, estar a impossibilitar um aluno de terminar o curso por causa do cabelo e da barba, uma vez que tem professores e membros de direcção que se apresentam da mesma forma. Isto é o que diz Abreu Paxe. “É importante que Yele apresente uma resposta da direcção sobre este assunto. Se não tiver, devemos saber como ele tratou isso. O problema pode não estar no cabelo, o problema pode ser outro (de amor ou de paixão), pois não se entende como o regulamento interno permite uns e não permite outros”, disse.

O docente disse conhecer bem Yele Kengue, porque acompanhou o caso, na altura, quando ele contactou o seu irmão [Isaac Paxe] e deram-lhe conselhos e estava em crer que a situação já tivesse sido resolvida. Ficou surpreso com o post nas redes sociais da situação de Yele. Como estudante, relembrou, ele tem deveres e direitos e deve-se ver até que ponto a direcção está a violar os direitos do estudante.