Angolanos lucram vendendo latas do lixo na Namíbia

Angolanos lucram vendendo latas do lixo na Namíbia

O negócio parece nojento e propício para a aquisição de inúmeras doenças, mas alimenta dezenas de famílias que viram no lixo uma fonte de sobrevivência. As latas colhidas nas lixeiras da cidade de Lubango têm sido comercializadas na Namíbia, onde 1Kg custa 8 Rands

João Katombela, na Huíla

Levantam-se pelas cinco horas da manhã para recolher latas vazias de refrigerantes nos vários contentores espalhados por algumas artérias da cidade do Lubango, capital da província da Huíla. O trabalho envolve algumas famílias monoparentais (suportadas apenas por um único membro do casal, ou seja, a mulher ou homem) acompanhados pelos seus filhos, dos 10 aos 16 anos de idade.

Quanto maior for o número de membros de uma determinada família envolvida na recolha de latas, maior será a quantidade de material recolhido durante o longo dia de trabalho. Nesta actividade, as condições de segurança são totalmente ignoradas, pois, durante a nossa reportagem, em alguns pontos de concentração de lixo da cidade do Lubango, como o Nambambe, antigo mercado João de Almeida, Bula Matady, a Luta Continua, Mutundo e Camujengue, constatou-se que não usam luvas nem mesmo máscaras.

Domingas Mateus, de 37 anos de idade, vende as latas que recolhe do lixo do Lubango na vizinha República da Namíbia. Conta que não tem sido fácil recolher latas no aterro sanitário, porque os moradores da localidade não deixam que os outros acedam ao local. “Todos os dias, aqui no Luyovo é assim, não nos deixam recolher as latas à vontade, só pelos que vivem aqui próximo da lixeira. Vimos de longe e é complicado regressarmos sem nada, por isso, há momentos que sai mesmo luta, principalmente quando vem o camião”, referenciou.

Durante a reportagem no aterro sanitário do Luyovo, na localidade de Camujengue, OPAÍS deparou- se com a destruição de mais de seis toneladas de caixas de refrigerantes e outras bebidas em lata, por apresentarem alterações na sua composição química, fruto de um incêndio que deflagrou num dos armazéns “A Nossa Casa”. Foi um momento de alegria para os colectores.

Quilo de latas rende 8 Rands na Namíbia

As latas recolhidas do lixo que se encontra em vários sítios da cidade do Lubango têm um mercado bem definido. Entretanto, para que o produto chegue ao comprador, passa por um processo de lavagem feita de forma manual, aumentando ainda mais o risco de cortes nas mãos. Depois de lavadas, as latas são embaladas e carregadas em camiões que as transportam para a vizinha República da Namíbia, através da fronteira da Santa Clara, na província da Cunene. Na República da Namíbia, um quilograma de latas é vendido por 8 Rands, o equivalente a 200 Kwanzas. Para que a mercadoria entre em território namibiano, as mulheres usam bicicletas criadas para o efeito na fronteira da Santa Clara, como conta Rosalina Paulo, de 28 anos de idade.

Lutas pelo Lixo

A recolha de latas não tem sido fácil para as famílias que vivem da actividade, uma vez que, ao ser descoberta a possibilidade de sustento, a luta tem sido titânica para se conseguir um espaço em que se encontre uma quantia considerável latas para reciclagem. Dos principais pontos de recolha, destacamse os bares e algumas barracas que confeccionam alimentos no mercado do Mutundo. A par dos bares e alguns rantes da cidade do Lubango, um dos maiores pontos de recolha é o aterro sanitário do Lubango, localizado no bairro do Camujengue, na comuna da Arimba, município do Lubango. Estes pontos algumas vezes são disputados por três ou quatro famílias. No aterro sanitário é onde acontecem mais lutam, tudo porque o local é frequentado por pessoas que vêm dos bairros mais distantes da cidade.

Colectores defendem a instalação de uma recicladora

Transportar latas para a República da Namíbia não é tarefa fácil para as mulheres que dominam o negócio na província da Huíla. Por cada saco de latas recolhidas são necessários 1500 Kwanzas para o seu transporte. O preço cobrado na transportação da mercadoria, segundo Joana Mariana, de 40 anos de idade, encarece ainda mais a vida das mulheres, pelo baixo preço que os compradores ditam.

Apesar de não haver um investimento alto em dinheiro na recolha de latas, Joana Maria, explica que se gasta também com o pagamento do transporte que a leva de casa para os vários pontos de recolha. “Eu vivo no bairro do Tchioco e para chegar até aqui tive de pagar cerca de 500 Kwanzas no táxi. Para podermos transportar para a Namíbia pagamos 1500 Kwanzas. Dependentemente do peso temos o lucro de 3000 Kwanzas num saco de 25 quilogramas, que custa 5000 Kwanzas”, revelou.

Para inverter esta situação, as empreendedoras defendem a instalação no país de uma fábrica recicladora, de forma a reduzir os custos e contribuir para o aumento da capacidade financeira das famílias. “Na verdade, dá para sustentar a família, dá para pagar a escola dos meus filhos, mais, ainda assim, não dá para fazer poupança para aqueles casos de doenças ou outras urgências. Por isso, gostaríamos que o Governo ou os empresários do nosso país pudessem também abrir, aqui, uma fábrica de reciclagem de latas”, recomendou.

Quem alinha no mesmo diapasão é Manuel de Jesus, o único homem entre as senhoras que igualmente se dedica à recolha de latas para vender na Namíbia. “Se houvesse aqui uma reciclagem, poderíamos poupar dinheiro e aumentar o número de pessoas que recolhem latas e reduzir o lixo no país” avançou.

Cortes tratados com óleo de travões Maria Luísa recolhe latas com a sua filha de 13 anos de idade, e, apesar de já se ter ferido várias vezes duramente a recolha, é das que não usam luvas. Trabalha (com a filha) há muito tempo na recolha de latas porque não tem outra forma de ganhar a vida, uma vez que o seu esposo tem outra relação. Os cortes são frequentes nas mãos e nos pés e as famílias envolvidas na recolha de latas carregam consigo um frasco contendo óleo de travões de viatura, que normalmente é usado para “esterilizar” o local do ferimento. “Cada pessoa tem o seu frasco com óleo dos travões. Tão logo haja um corte, esfrega um pouco para não apanhar tétano”, disse Maria Luísa.

Médico alerta sobre as doenças que podem vir do contacto com o lixo

Para saber mais dos riscos por que estas famílias passam, OPAÍS contactou um especialista em medicina geral, Gabriel Bumba Malonda. O médico apontou o risco de contágio de doenças graves, pelo que não aconselha o uso de óleo de travões no tratamento de ferimentos no corpo. Este produto, disse, pode causar ainda outros problemas na pele. “São muitas as doenças que se pode contrair no contacto directo com o lixo, dentre elas as doenças diarreicas agudas, ascaridíase, anciclostomíase, teníase solium e saginata, febre tifoide e cólera”, detalhou.

Na sequência, Gabriel Bumba Malonda disse ainda que por picadas com objectos corto-perfurantes que se pode encontrar em vários amontados de lixo, pode contrair-se o tétano, HIV, Hepatites, dermatite alérgica e escabiose. Para se prevenir destas e outras doenças, o médico aconselha que o processo da recolha de latas do lixo deva ser feito apenas por adultos, devidamente protegidos. “Se dissermos que não podem recolher latas no lixo, estaremos a privar famílias de uma fonte de rendimento, o que podemos aconselhar é que sejam os adultos a fazer este processo, mas devidamente equipados com equipamentos de protecção”, recomendou.