machismo travou o sucesso do futebol feminino

Hoje assistiremos à fi nal do CAN entre a Argélia e o Senegal. Mas esta será uma fi – nal masculina, as futebolistas americanas já venceram a Copa do Mundo de Futebol Feminino no dia 7 de Julho último em França. É surpreendente hoje, mas o futebol feminino teve um enorme sucesso nos vinte anos que seguiram a codifi cação do futebol moderno, nos anos 1860. Um parêntese encantado que os homens fecharam para que o futebol permanecesse sua exclusiva prerrogativa. É o que conta o livro do jornalista Mickael Correia, « Une histoire populaire du football », e lembrou recentemente a imprensa francesa. O primeiro jogo internacional de futebol feminino foi entre a Escócia e a Inglaterra e teve lugar em 9 de Maio de 1881 em Edimburgo. Já se notava a hostilidade dos homens nos relatos dos jornais da época. « Do ponto de vista do futebolista, o jogo foi um fi asco, mesmo se algumas jogadoras pareciam entender o jogo », comentou o jornal Glasgow Herald. E a violência verbal contra as jogadoras transformava-se rapidamente em violência física. Poucos dias depois desse jogo, um outro, ainda entre a Escócia e a Inglaterra, teve lugar em Glasgow e foi interrompido pela invasão do campo por homens. As jogadoras tiveram que se refugiar em um ónibus, no qual os machistas lançavam as barras das balisas que tinham arrancado. Em 20 de Junho, tentouse repetir o jogo em Manchester, mas outras violências ocorreram. E lemos no Manchester Guardian denúncias contra essas mulheres que se vestiam « com trajes tão desagradáveis quanto indesejáveis ». A organizadora dos jogos, a activista escocesa Helen RICARDO VITA* Matthews, e as suas equipas tiveram que abandonar as competições. Tal virulência pode ser explicada pelo contexto da época. Na década de 1880, o feminismo britânico estava em plena efervescência. Os homens começaram a preocupar-se com o questionamento da dominação masculina, que reduzia o corpo das mulheres a uma simples ferramenta de reprodução. Deste ponto de vista, a prática feminina do futebol apresentava dois problemas. Julgada indecente, também era vista como perigosa « para os órgãos reprodutivos e o peito por causa dos brutais solavancos, reviravoltas e golpes inerentes ao jogo », escreveu a British Medical Journal em Dezembro de 1884. E a revista não hesitou em recomendar que as mulheres fossem banidas desse desporto. « A maternidade é também um desporto, o verdadeiro desporto das mulheres », afi rmavam até certas bocas. Os homens viam nessas primeiras mulheres que praticavam o futebol o desenvolvimento de um discurso de igualdade que ia muito além da bola. E a declaração de Nettie Honeyball, fundadora do primeiro clube de futebol feminino da história em 1894, o British Ladies’ Football Club, – « eu fundei a associação no ano passado com a fi rme vontade de provar ao mundo que as mulheres não são criaturas ‘ornamentais’ e ‘inúteis‘ que os homens imaginam. (…) Aguardo com impaciência a altura em que as mulheres estarão presentes no Parlamento para que as suas vozes sejam ouvidas nos assuntos que lhes dizem respeito » -, não ajudou em nada. A Câmara dos Comuns do Reino Unido só teve a sua primeira mulher, Nancy Astor, em 1919 e o futebol feminino, por sua vez, teve uma segunda fase de sucesso muito mais rápida. A partir de 23 de Março de 1895, um jogo entre uma equipa do norte da Inglaterra e outra do sul reuniu 10 mil espectadores. Mas em 1902, a Federação Inglesa de Futebol proibiu todos os clubes masculinos de enfrentarem mulheres. No ano seguinte, o British Ladies’ Football Club fechou as portas e foi o fi m da segunda fase pioneira. Como em outras áreas, não foi até o início da Primeira Guerra Mundial que as mulheres voltaram à vanguarda da cena do futebol. No centro da guerra, 700 mil mulheres trabalhavam em fábricas inglesas de munições. Essas mulheres, supervisionadas por patrões paternalistas, criaram 150 equipas de futebol entre 1915 e 1918. O futebol feminino tornou-se um meio de « reforçar a imagem social das trabalhadoras envolvidas em um desporto nacional saudável e revigorante », escreveu Mickael Correia. O Primei- O PAÍS Sexta-feira, 19 de Julho de 2019 31 ro-ministro britânico da época, David Lloyd George, falou até mesmo de « valentes heroínas ». Especialmente desde que os jogos que elas organizavam eram muitas vezes a ocasião para colectar doações para fi nanciar hospitais de guerra. Em 1918, 750 mil trabalhadoras inglesas tinham uma licença de futebol! Entre as equipas, havia Dick, Kerr’s Ladies F.C, uma equipa do norte de Manchester, que fi cou rapidamente famosa. Capaz de praticar um jogo rápido, técnico e ofensivo, as onze mulheres atraíam multidões. Na primavera de 1919, 35 mil pessoas assistiram a um dos seus jogos contra as Newcastle girls. Um ano depois, enfrentaram pela primeira vez uma equipa francesa, liderada por Alice Milliat, uma jovem de origem modesta que rapidamente se tornou uma das fundadoras dos desportos femininos franceses e internacionais. O sucesso foi imenso, as futebolistas francesas e inglesas cativaram um grande público e apareceram nas capas de revistas. Mais uma vez, por trás do sucesso desportivo e midiático, havia um pano de fundo político. Alice Milliat, como as outras pioneiras do futebol britânico, tornou o desenvolvimento do desporto feminino uma luta feminista mais ampla. Com a sua notoriedade e a ideia ainda ancorada na França no início da década de 1920 de que o desporto podia participar na regeneração da Nação após a guerra, Alice Milliat conseguiu inserir-se no espaço midiático da época. As mulheres perceberam que a prática desportiva não era apenas outro bastião masculino a ser conquistado, era especialmente importante que elas questionassem o argumento biológico da inferioridade feminina. Na Inglaterra, mais do que na França, o sucesso mediático do futebol feminino irritou rapidamente as autoridades do futebol. Depois de estar interrompido durante a guerra, o campeonato masculino retomou a sua hegemonia em 1919. Em 1921, a Federação Inglesa de Futebol proibiu os clubes de emprestarem os seus campos às equipas femininas. « O futebol não é adequado para mulheres e nunca deve ser incentivado », diziam os seus dirigentes, « o futuro dever de casa, como mães, seria muito comprometido », diziam outros machistas. O regresso à ordem patriarcal a que os homens aspiravam passou por um regresso à ordem futebolística. A mensagem política enviada pelas autoridades políticas foi clara: « os estádios de futebol devem continuar a ser um templo da masculinidade e as mulheres são obrigadas a dedicar- se à regeneração da Nação ». Aí acabou a festa, pois organizar um jogo de mulheres se tornou um combate longo e difícil, e os clubes masculinos só foram autorizados a emprestar os seus campos a mulheres em 1971. E recentemente, no dia 17 de Março deste ano de 2019, 60 mil pessoas assistiram ao jogo feminino entre o Atlético de Madrid e o FC Barcelona. Então o sucesso ainda é palpável, mesmo após 100 anos de atraso causado pela predação masculina. Em 1920, um jogo de Dick, Kerr’s Ladies F.C, contra o St. Helen’s Ladies em Liverpool já tinha reunido cerca de 53 mil espectadores. Bela luta minhas senhoras, parabéns! *é Pan-africanista, afrooptimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Folha de São Paulo (Brasil), do diário Público (Portugal) e do diário Libération (França). É cofundador e vice-presidente do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é empresário