Havia dos pseudo-ricos um abuso muito grande daquilo que é a vida humana’

Havia dos pseudo-ricos um abuso muito grande daquilo que é a vida humana’

Há um ano, a Tv Zimbo, com o rosto de Salú Gonçalves à tona, inaugurou um novo ciclo na televisão no país com o programa fala Angola, apontado hoje como um dos mais vistos. Centenas de pessoas, diariamente perfilam defronte às instalações desta TV para apresentarem as suas queixas sobre assuntos de vária índole e também a busca de soluções para maleitas de saúde e outras. Apesar disso, o apresentador recusa dizer que o espaço em que dá a cara seja um tribunal social e muito menos que esteja a perseguir instituições ou pessoas. Segundo ele, o que pretende, e tem feito, é mostrar às pessoas que ainda há esperança

entrevista de Dani Costa
fotos de Daniel Miguel

Acredita que o programa Fala Angola, no ar há um ano, inaugurou um novo ciclo da televisão no país?

Com certeza. Houve um início um bocado balanceado. As coisas balançaram de um lado e do outro, porque não se estava habituado a ver e a ouvir tanta verdade ao mesmo tempo. Mas a TV Zimbo já tinha acostumado os seus telespectadores a coisas fora do comum numa Angola que não era tão comum assim. A minha vida mudou totalmente, mas também tenha mudado inclusive pessoas dentro da própria televisão, da Zimbo e noutras televisões, porque, primeiro, nós mexemos com a programação, tanto das rádios como das televisões. Nós tocamos as pessoas e fizemos com que elas se habituassem a ter uma vida, digamos que regrada, para poder ver conteúdos e hoje há uma marcação de tempos para que possam ver o Fala Angola. Relativamente a isso, claro que existiram ameaças, perseguições e sombras.

Tinha noção do que o esperava com um programa como o Fala Angola?

Quando me convidaram para fazer o programa tinha consciência do que haveria de fazer e da forma como isso mexeria com a mente de até então super-poderes.

Até que ponto a sua vida mudou?

Olhe, foi muito simpático por parte da Polícia Nacional. E vou começar pela protecção por parte do ex-ministro do Interior, Ângelo da Veiga Tavares, ao me ter recebido para me garantir que deveria ficar tranquilo e seguro. Mudou a minha rotina sim. Pese embora eu gostar muito de me divertir, hoje meço bem quando é que saio à noite, porque tive perseguições. Quando estou a falar de perseguições, não me refiro às pessoas que buzinaram por uma ou outra coisa, foram dizendo e transformando coisas mesquinhas em produtos para derrubar o programa. Vocês viram que houve uma reacção menos boa até do partido no poder, o MPLA. Houve agora outra reacção menos boa.

Não estamos tão habituados assim a olhar para esta verticalidade de podermos olhar para os outros como iguais. A diferença está aí. Quem eram as estrelas do nosso país? Os membros do Governo e alguns detentores de riquezas que hoje não vemos que riquezas são. Recolheram-se, estão a fugir, puseram- se fora do circuito habitual. Mudou a minha vida sim, hoje me resguardo um pouco mais. Mais do que outrora, devo ser um exemplo em determinadas alturas da minha vida, fora ou dentro da minha casa, fora ou dentro do meu local de trabalho. E isso mudou um pouco a forma como as pessoas olhavam para os jornalistas. Pela tentativa que muitos tiveram de mudar paradigmas, houve aqui um rompimento, um entrar sem bater a porta.

O Fala Angola pode ser encarado como um tribunal social onde até já se ditam algumas sentenças? (Risos).

Eu não chegaria tão longe e nem é isso. Nos transformamos apenas numa montra. Temos uma montra onde as pessoas podem ver conteúdos e avaliar a roupa que querem comprar. Vejo isso como um grande supermercado, onde as pessoas entram e têm o direito de reclamar, trocar determinados produtos e poder falar com o gerente ou com quem os atenda, para dizer que não estou de acordo, porque quero o produto desta forma.

As pessoas não estavam habituadas a falar sobre o sofrimento que sobre elas recaía. Vou dizer de forma diferente: nós não estávamos habituados a falar do sofrimento que recai sobre todos nós. Mesmo a classe jornalística, a auto- censura, os modelos adquiridos de propaganda política transformada em informação e não do facto transformado em notícia. É essa a diferença.

Quais são as denúncias que mais têm recebido?

Usurpação de terrenos, ocupações ilegais de terrenos e casas. De longe sai também disparada a violência doméstica e, no geral, de homens para mulheres, homens para filhos na sua maioria. Somos nós os homens quem mais batemos nos nossos filhos e nas nossas esposas, mas as mulheres também fazemno quando agridem os filhos, mutilam- nos, os abandonam e fogem. Temos muitas denúncias sobre infra- estruturas e redes sanitárias, hospitais e atendimento nos principais do país. Temos muitas reclamações de supostas negligências médicas, que eram casos que se abafavam com muita facilidade.

Hoje, os próprios médicos começam a ganhar um pouco de consciência dos actos que vão tendo. Recebemos muitas queixas de meninos e meninas que tiveram de se prostituir. O aspecto social nos toca tanto e às pessoas, a forma como dormimos, o que comemos e quando comemos. Onde é que encontramos esta comida. Nós recebemos disparadamente muitos casos de empresas do Estado e que pareciam privadas faltarem com salários em tempos de um ano, meses, enfim. Ainda despedimentos arbitrários. Há uma amálgama de situações que hoje consideramos que começa a haver alguma disciplina mais, que eu transformo em respeito pelos outros. Havia da super- chefia, dos pseudos-ricos um abuso muito grande daquilo que é a vida humana, a humanização das pessoas, e isso transformou-me.

Um ano depois, quais foram as histórias que o marcaram profundamente?

Sim, muitas. A do mais velho no Lubango que, 40 anos depois de ter construído a sua casa, apareceu uma portuguesa dizendo-se dona do terreno. O poder judiciário decidiu a favor daquela senhora e esqueceu-se da Lei do Uso Capião. Creio que não se deram conta de que 40 anos depois de o homem ter recebido aquele documento, de um comissariado, tinha a posse daquele terreno.

Simplesmente, mandaram um oficia fechar a casa e retirar as suas coisas num clima como o do Lubango, onde a família permaneceu até bem pouco tempo, altura em que o governador decidiu dar uma casa, ainda assim provisoriamente àquele cidadão angolano que fez a casa, teve os seus filhos e despejado de um momento para o outro. Há pouco tempo falamos de um pai que por causa de uma moeda de 10 Kwanzas queimou as mãos dos filhos. Chorei algumas vezes, emocionei-me, mas eu sou assim: emociono-me com as coisas. Isso passou um bocado por cima do profissional .

Pelos vistos, não tem sabido se conter emocionalmente?

Tenho sabido, mas tem vezes que escorrego. Escorrego mesmo. São muitos os casos e pus-me em lágrima por causa daquela oficial da Polícia Nacional que maltratou uma criança que não lhe fez mal algum, quando ela é que pediu que fosse à casa dela. Não suportei. Toda essa junção de coisas bem ou mal feitas acabaram por gerar críticas de exageros de condutas, de tribunal exposto, incluindo quem devia apelar em sair em acusações de tribunal, de um pistoleiro ou um juiz. Nunca me coloquei no papel de superior de ninguém. Sempre me coloquei no papel de alguém que através do cidadão denuncia aquilo por que passa.

Qual tem sido o feed back do trabalho feito por esta equipa do Fala Angola e o seu em particular?

Maravilhoso. Só para imaginar, aí nas Mangueirinhas, creio, quando saía do Lubango para o Namibe, parámos para comer as fitas de carne, o meu filho disse-me que o melhor era eu não sair do carro. Respondi-lhe que eu tinha de escolher o que vou comer e saí. Mas nunca imaginei que num local de nenhures, quase sem água canalizada e energia electrica, alguém fosse reconhecer o meu trabalho. Aconteceu no Cunene e em Benguela. E hoje vejo que a equipa do Fala Angola tem sido muito esforçada.

O que os repórteres fazem tem sido uma bênção, por exemplo acordarem para acompanhar o dia-a-dia de determinadas pessoas que começam o dia antes mesmo de o dia nascer. E eles estão lá para acordá-los às cinco horas da manhã, caminhar com eles, correndo exactamente os mesmos riscos que esses cidadãos correm quando saem de casa e são assaltados, as mulheres são violadas e as crianças estupradas. Isso com certeza mudou a vida de cada um de nós, desde os produtores, a editoria e culminando nos repórteres e no pivot do programa. Mudou sim as nossas vidas.

Já vi ministro a fazer xixi na rua’

A vida das pessoas tem mudado, assim como os problemas que apresentam encontram algumas soluções?

Sim. Por isso, resolvemos colocar o carimbo: resolvido. Ainda agora que estamos a falar, está uma mulher que há alguns dias teve um incidente em casa, porque um mamoeiro caiu-lhe às costas. Eu recebi uma mensagem do Dr. Carlos Zeca, director do Hospital Geral de Luanda, a dizer que a senhora estava a entrar para o bloco operatório. Estou aqui em pulga neste momento para que me mandem uma mensagem a dizer que ‘a cirurgia correu bem’.

Para que nós coloquemos o carimbo resolvido e essa mulher continue a fazer a sua vida como sempre. Sinto satisfação e, mais que tudo, que as pessoas acreditaram e de tal maneira no ‘fale comigo, que eu vou fazer ouvir-me’. Então, se olharmos para os números, a estatística está com certeza a favor do Fala Angola. É o programa mais visto das televisões em Angola.

Há quem diga que existe uma certa dose de autoritarismo no slogan ‘Comigo é assim: ou é ou não é’. Concorda?

Não é autoritarismo. É dar às pessoas um golpe de esperança. Eu não posso nem devo ser autoritário. Eu não sou autoritário. Tem vezes em que tenho de me portar assim com a minha família e com os meus filhos, com uma maka que eu tenha num ou outro lado. Mas na televisão não. Comigo é ou não é, é simplesmente dizer ou nós resolvemos ou não. E houve casos em que não conseguimos encontrar respostas. Mas houve casos em que nós falamos, como o Jardim do Éden, em que depois de muitos anos houve uma prisão decretada àquela pessoa que ficou com o dinheiro daquela gente toda.

Era muito dinheiro. Ainda continuamos à espera que se resolva o problema daquele projecto em que esteve o Pelé, o Bem Morar. Há pessoas que já morreram, outros que esperam por parte do poder judicial ouvi- los, porque atiraram aquilo para uma gaveta. Por isso, acho que se faça justiça, que se vejam as pessoas como seres humanos e não apenas como estrelas. Outrora chegavam os governantes ou pseudo-governantes, que passavam por cima de toda a gente, ocupavam as zonas VIPs de tudo que era evento, transportavam mulheres de outros países para Angola. Aonde é que estamos a ver isso hoje? Não vemos isso. Há uma determinada disciplina. Posso mesmo dizer que em parte contribuímos para esta disciplina fosse imposta.

Não tem havido uma dose de sensacionalismo no programa?

Eu não levo isso para sensacionalismo. Quem já me ouviu a fazer rádio sabe que sou muito activo naquilo que faço. Deixei de fazer programas de informação, já os fiz na Rádio Luanda, porque disse que vi um ministro a fazer xixi na rua. E tiraram-me. Preferi fazer entretenimento e só. Na brincadeira, eu ia disparando algumas coisas, mas as pessoas diziam: ‘é o Salú, deve estar a brincar’.

Com a responsabilidade de estar num programa informativo, as coisas mudaram. Mas quando fui colocado no programa era exactamente para tirar um bocado de formalismo jornalístico na televisão para um programa com vida de rádio. Isso tem parecido sensacionalismo, mas não. Tem sido uma forma de despertar as pessoas. Isso sim, mas não sou sensacionalista mesmo.

Tendo em conta o que é dito e as pessoas apresentam no programa, que Angola é que temos afinal?

Um país desgraçado. Um país a cair para todos os lados. Um país que mistura uma lepra adquirida, sem ofensas, juntamente com febreamarela e paludismo. E essas pessoas que têm esta enfermidade, em comum serem transportadas num carro e morrem num acidente em que ficam completamente despedaçadas. Espero que o país mude. Em algumas coisas tem mudado e eu noto. Mas as pessoas querem mais rapidez. Já disse várias vezes no programa que isso não se resolve com o estalar de dedos. Mas a minha imagem de Angola é a de um país a cair aos pedaços.

Está na rádio, passou pela música, pela televisão num outro figurino.

Com humor.

Pensa manter-se por muito mais tempo num programa como o Fala Angola?

O programa é finito, ele pode terminar a qualquer instante, como pode continuar por mais dois, três, quatro anos. Eu gosto de fazer televisão, mas gosto muito mais de fazer rádio. A televisão atrapalha um bocadinho mais o ser humano e coloca muito na corda bamba o profissional. É por isso que passamos todos os dias. Eu quero continuar a ser útil para as pessoas. Eu gostava de continuar a ter utilidade e deixar uma lição todos os dias, quer seja através da desgraça de alguém ou do comportamento cívico de uma outra pessoa.

Espera também ser compreendido pela própria sociedade, entre os quais políticos?

Exactamente. Eu creio, sobretudo, que os políticos já começaram a compreender que não há perseguição a ninguém. Eu não tenho porque perseguir quem quer que seja. Nenhum deles me fez mal algum, mas também nenhum deles enquanto exerceu profissões me terá feito tão bem assim para que a minha vida melhorasse. Olhe que não sou um pobre. Não me considero um cidadão pobre.

Desde que me considero um comunicador e já lá vão 35 anos. Quando nasci, o meu pai tinha acabado de sair da cadeia do Missombo, porque queria fugir com o MPLA para o Congo Kinshasa. Eu sempre vivi com educação dos meus pais, casados. O meu pai sempre trabalhou, deu-me comida e um tecto. Então, eu não posso considerar que tenha sofrido tanto assim, muito embora sofri, e vi meu pai sofrer, quando doente os elementos da PIDE apareceram, porque ele não se tinha apresentado à esquadra e o arrancaram de casa. Não tiro isso da minha memória. Isso aconteceu no Cazenga.

Não me esqueço da forma como fui maltratado quando comecei a estudar na escola da Terra Nova. Fui maltratado, ultrajado porque era negro e não poderia ter as notas boas que tinha. Hoje, sinto-me um pouco no direito de lutar por aquilo que é meu também. Angola é de todos nós. Cada um de nós tem de fazer o que deve fazer. Deixemme fazer as denúncias, que elas sejam legais e comportáveis. E deixem-me dizer às pessoas que há esperança. Eu tenho esperança de que tudo melhore.