Dois anos depois: “Promessas não passam de intenções no sector da cultura”

Dois anos depois: “Promessas não passam de intenções no sector da cultura”

Do ambicioso projecto que viria a transformar o antigo edifício da Assembleia Nacional em Palácio da Música e do Teatro e da Requalificação das Instalações da Tourada, do Teatro Avenida e do Cine Nacional, coordenado pela antiga ministra da Cultura, Carolina Cerqueira, nada mais se diz.

Para efectivação e execução do aludido projecto, o Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, criou uma comissão multi-sectorial, que, além da então ministra do pelouro, Carolina Cerqueira, integra igualmente o ministro da Construção e Obras Públicas, que é o coordenador adjunto, e os ministros das Finanças, do Ordenamento do Território e Habitação, o governador da província de Luanda, o secretário para os Assuntos Sociais do Presidente da República e o director-geral do Gabinete de Obras Especiais.

Entre as atribuições da referida comissão visava-se concluir a elaboração dos estudos técnicos e projectos executivos relativos à transformação do antigo edifício da Assembleia Nacional em Palácio da Música e do Teatro, preparar e realizar o concurso público para a elaboração de estudos técnicos e do projecto executivo relativo à transformação das instalações da Tourada e envolventes, do Teatro Avenida e do Cine Nacional em infra- estruturas de interesse cultural.

Essa promessa não passou de intenção, embora ainda faltem mais três anos de mandato. Mas, ao que se sabe, até ao presente momento nada mais se diz. A expectativa durante este mandato era de que as anunciadas transformações destas infra-estruturas em activos viriam a benefi ciar o mosaico cultural angolano. Chegaram a ser bastante aplaudidas pela crítica (as intenções) bem como pela população em geral, que até hoje não vêem sequer as acções saírem do papel.

De salientar que a comissão surgiu da necessidade de se atribuir uma utilidade de natureza social e cultural ao antigo edifício da Assembleia Nacional e às instalações da Tourada, do Teatro Avenida e do Cine Nacional, em Luanda, visando o melhor aproveitamento da sua componente arquitectónica e histórica.

Festivais

Além de se assinalarem encontros, em duas ocasiões, com um grupo de músicos e humoristas com o Presidente da República, a realização do FestiKongo, a Bienal de Luanda, a IX edição da Bienal da CPLP e o regresso do FestiSumbe, dominam o centro das atenções da Cultura nacional nestes dois anos, faltando três para fim deste mandato eleitoral, resultante das eleições saídas de 2017.

FestiKongo

O FestiKongo foi realizado entre os dias 5 e 8 de Julho, esta última, data em que se assinalou pelo segundo ano consecutivo o aniversário da elevação de Mbanza Kongo a Património Mundial da humanidade, eleita durante a 41ª sessão de Património Mundial da UNESCO reunida em Cracóvia, no Sul da Polónia.

Uma das recomendações, além de preservar, conservar e divulgar o acervo material e imaterial da secular cidade capital do Reino do Kongo (Mbanza Kongo), a mesma teria de acolher em três anos consecutivos um festival multidisciplinar. Daí que o Executivo angolano, ante a referida recomendação, realizou este ano o Festival Internacional da Cultura Kongo, simplesmente FestiKongo.

Durante o certame juntaram-se as actuais República Democrática do Congo, Congo Brazzaville e República do Gabão, por na altura integrarem o vasto território do Reino do Kongo, cuja capital é hoje Património Cultural da Humanidade (Mbanza Kongo).

Por essa razão, apresentaram-se várias manifestações culturais, envolvendo, além da dança, exibição de cinema, teatro, um mega festival de música, exposições de artigos diversos de artes plásticas e artesanato. Foram igualmente realizados colóquios, debates e workshops, bem como uma feira de produção agro-pecuária, em que foram demonstradas as potencialidades económicas dos municípios que integram a província do Zaire.

Populares

Apesar de toda as manifestações aí apresentadas, os munícipes da cidade de Mbanza Kongo clamaram pela melhoria da cidade, assim como o melhoramento das estradas principais que dão acesso à província, com vista a uma maior atracção do turismo e por sua vez capitalizar um maior número de investimentos.

Saliente-se que depois da I edição, Angola terá de realizar obrigatoriamente mais duas edições como exigências da UNESCO, e depois poderão ser facultativas. Pelo que se sabe, estão-se a criar condições para que o FestiKongo tenha periodicidade bianual.

Recomendações

Entre as nove recomendações da UNESCO, constam a construção de um novo aeroporto para Mbanza Kongp (o actual localiza-se no centro da cidade), a remoção ou substituição das antenas das operadoras de telecomunicações (Unitel e Mocivel), bem como a torre da Emissora Provincial da Rádio Nacional de Angola (RNA).

Seguem-se igualmente a preservação do centro histórico de Mbanza Kongo, requalificação das quatro fontes de água (Santa, Madungu, Ntentembua e Kilumbu), assim como a apresentação do projecto do futuro museu do Reino do Kongo.

O Executivo angolano deverá produzir até final deste ano um relatório de actividades sobre o grau de cumprimento das recomendações que poderá ser analisado na reunião do Comité do Património Mundial da Unesco a realizar-se entre Junho e Julho de 2020.

FestiSumbe

A cidade do Sumbe, no Cuanza- Sul, voltou a acolher, quatro anos depois, o Festival Internacional de Música “FestiSumbe”, cujo mote é a celebração da urbe a 15 de Setembro, além da celebração de 12 anteriores manifestações ao nível de todos os municípios que integram a província.

Assim, o cume das celebrações recaíram para o FestiSumbe, numa cidade que, do ponto de vista de infra-estruturas contínua degradada, embora haja um plano de requalificação e melhoria da localidade, conforme dizem as autoridades locais.

O Festival de Música foi o ponto mais alto das celebrações, assinalado pela organização e produção da LS Republicano que, a convite do Governo local, assinou um “Memorando de Entendimento” para realização deste festival por quatro edições, em que o ponto assente recai nos custos relativos à produção pela respectiva produtora.

Entretanto, o director da Cultura, Turismo, Juventude e Desportos do Cuanza-Sul, Agostinho Casseça ‘Mikas’, signatário do documento, explicou recentemente a OPAÍS que o Governo do Cuanza-Sul convidou a LS Republicano precisamente porque não tinha recursos financeiros para suportar as despesas do festival, por isso lançou o desafio à produtora que prontamente assumiu os encargos, ficando da parte do GPCS, todo o apoio institucional.

Bienal da CPLP

Realizou-se em Julho deste ano a IX Bienal de Jovens Criadores da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), na capital do país, Luanda.

O evento, que decorreu sob o lema “Juventude da CPLP Unida pela Cultura”, teve a duração de cinco dias, e constituiu-se num espaço de debates e de reflexão sobre as criações artísticas e culturais dos jovens da Comunidade Lusófona, com o foco no debate e na partilha de vivências nas diversas esferas da vida política, económica e social, bem como na divulgação de políticas públicas para a juventude da CPLP e do mundo.

Esta IX Bienal de Jovens Criadores da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que teve como eixo principal o hall do Museu Nacional de História Militar, visou, entre vários aspectos, contribuir para o reforço do processo de integração da juventude, a aproximação, o intercâmbio e o debate entre as diferentes identidades culturais e artísticas, e contou com a participação de mais de uma centena de jovens criadores desta comunidade, segundo relatos da organização.

A Bienal reuniu 200 jovens exexpositores de países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), ou seja, do Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Guiné Equatorial e Angola, país anfitrião.

O certame, adoptado pela I Conferência de Ministros Responsáveis pela Juventude e pelo Desporto da CPLP realizada em Portugal, na Cidade de Lisboa, em 1996, teve a sua primeira edição realizada em 1998, na cidade da Praia, República de Cabo Verde.

Bienal de Luanda

Um outro evento a destacar neste conjunto de realizações em Angola, nestes dois anos do Presidente João Lourenço, é, sobretudo, a recémterminada Bienal de Luanda – Fórum Pan-Africano para a Cultura da Paz, um espaço que promoveu a diversidade cultural africana e o intercâmbio mútuo em todos os sectores que se dedicam a cultivar a Cultura da Paz e não-violência.

Este Fórum Pan-Africano para a Cultura da Paz, esteve orçado em 247 825 000,00 (Duzentos e quarenta e sete milhões e oitocentos e vinte cinco mil kwanzas), o que, segundo a organização, envolveu vários serviços:

Alojamento, deslocações para o interior, publicidade, Gestão de Comunicação e Media, colóquios, redes sociais, Marketing & Gestão, assessorira de imprensa, alimentação, mestre de cerimónias, combustíveis, entre outros serviços.

A Bienal de Luanda foi considerada pelo Presidente da República, João Lourenço, como uma plataforma única onde os governos, a sociedade civil, a comunidade artística e científica, o sector privado e as organizações internacionais debateram e definiram estratégias sobre prevenção da violência e dos conflitos em África, sob construção de uma paz duradoura.

Esta I edição do Fórum Pan-Africano para a Cultura da Paz juntou mais de 1600 participantes de países das seis regiões do nosso continente: Norte de África, África Ocidental, África Oriental, África Central, África Austral e da Diáspora (Américas, Caribe, Europa Ocidental e Oriental, Médio Oriente e Ásia.

A presente edição da Bienal de Luanda – Fórum Pan-Africano para a Cultura de Paz, baseou-se em seis eixos: Fórum dos Parceiros, Fórum de Ideias e Fórum da Juventude, Fórum das Mulheres, Festival de Culturas, Aliança de Culturas e Desporto a Favor da Paz.

Nas artes plásticas

“Também queremos ser ouvidos por João Lourenço para apresentar as nossas preocupações”.

O Secretário-geral da União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP), António Tomás Ana “Etona”, reconhece que a governação do país, para o Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, nestes dois anos, seja uma tarefa difícil, por observar que a mudança de paradigma está a ser trabalhosa, pelo facto de estar a lidar com o homem, um “animal” político, com os seus próprios interesses.

Por essa razão, como secretáriogeral da UNAP, defende um maior dinamismo na sua área, com a criação de galerias nas comunas, nos municípios e nas capitais provinciais, bem como uma galeria nacional, o museu nacional das artes, onde se almeja medir, em termos de época, o que aconteceu no passado e o que foi feito até hoje ao nível das artes.

Para o secretário-geral da UNAP, a criação destes espaços irá incentivar a produção permanente, uma vez que existem escolas que contribuem para a criação de novos artistas. Daí, a seu ver, urge a necessidade de serem ouvidos por João Lourenço, conforme aconteceu com os músicos. Pretendem apresentar essas e outras inquietações que têm dificultado o trabalho dos artistas plásticos.

“Os museus que temos estão a trabalhar nas condições que sabemos. As associações sempre a desenrascar. Deve, sim, haver melhorias. Diria também que, até agora, ainda não houve uma constatação directa, conforme aconteceu com os músicos. Mas acredito ser mais um show, porque não se discutiu praticamente nada de concreto”, rematou.

Mercados das artes

Uma constatação feita por Etona a nível do mercado das artes plásticas no país é o facto de estar a ser consumido por estrangeiros, através das actividades, no caso, as exposições de artes realizadas pelo Instituto Camões, o Centro Cultural Brasileiro e pela Fundação Arte e Cultura, que está ligada à Israel.

Indignado, realçou que este facto acontece pela inexistência de galerias e, por essa razão, nota que, “muitos julgam que quem está a trabalhar são essas instituições”. Disse ainda que em consequência da falta de orientação das artes plásticas, observa-se que os bons artistas, com a intenção de se salvarem, ficaram perdidos nos seus próprios interesses.

“Perdemos o sentido próprio de diplomacia, porque o estrangeiro dita as regras. E quando isso acontece, não se resolve nada. O país das artes plásticas não pode depender dessas instituições. Isso continua a acontecer porque não temos com quem discutir essas situações, de modo a ter um país mais claro, ciente daquilo que está a acontecer”, enfatizou.

António Tómas Ana contou que, na tentativa de virem a expor esses ‘problemas’, solicitaram audiências com o governador de Luanda, Sérgio Luther Rescova, mas até à presente data sem qualquer êxito. “Em todas as pirâmides a nível do mundo, sempre faltou as artes plásticas, porque ajuda a pensar. Tudo aquilo que um foi queimado no passado e chamado lixo, feitiço, hoje vê-se no estrangeiro e valem milhões de dólares”, lamentou.

Perspectivas

Etona mantém a esperança nos próximos três anos que restam de mandado de João Lourenço, pois pretende ver parte das inquietações dos artistas revolvidas, o que não aconteceu nestes dois anos. Ainda assim, continua a acreditar que o país esteja em condições de superar os seus problemas, com diálogo e uma maior atenção a este segmento da cultura.

“Se ele ler este artigo, acredito que nos próximos anos de mandato que lhe faltam poderá prestar alguma atenção, ou mesmo venha a dar solução a essas questões. Mas se ele não ler, não vai acontecer nada. As pessoas vão continuar inconformadas. Quando Waldemar Bastos Canta ‘Ché menino não fala política’, e essa música foi cantada logo depois da Independência, em 1975, hoje, esse menino já cresceu e está a envelhecer e, esse país também está morrer nas mesmas circunstâncias”, concluiu.

Cultura continua estagnada na era de João Lourenço

Em representação da classe dos músicos, Patrícia Faria disse a OPAÍS que nesta era de João Lourenço o sector musical não registou quaisquer mudanças que se reputem como significativas ou que venhama alterar o quadro ainda muito pobre, daquilo que esses artistas auguram para a dignifi cação desta arte, que muitos têm-na como ofício.

Partindo do pressuposto de que esta tarefa é árdua, a ex-integrante das “Gingas do Maculusso” referiu que não é, certamente, da noite para o dia que se poderão constatar transformações significativas e importantes para afirmação cultural de Angola.

Julga continuar coarctada a possibilidade de os músicos darem a conhecer a arte angolana e acrescenta que há uma necessidade urgente de se continuar a trabalhar, de forma a que o Executivo vele por eles e melhore as suas condições, para que possam “desfilar” com a sua arte pelo país e pelo mundo.

Falta de informação sobre Cultura angolana preocupante

Para ela, o cenário é alarmante, quanto pelo facto de que nos dias de hoje cada vez menos a nossa população tem acesso à informação, instrução, educação, bem como relativamente à história cultural angolana.

“E começa a ser mais alarmante quando vemos a nossa Cultura a ser exportada para o exterior, vemos outros povos a apossarem-se daquilo que nos pertence, muitas vezes com uma interpretação errônea e nós, angolanos, não temos uma palavra a dizer sobre isso, precisamos de ser mais atacantes, precisamos de ser mais interventivos, daquilo que é a defesa do nosso DNA cultural e isso passa, de facto, por uma política cada vez mais rigorosa”, vigorou.

Infelizmente, para Patrícia Faria, que além de música dirige a Casa da Cultura do Rangel “Njinga A Mbande”, muito do que caracteriza culturalmente o povo angolano se está a perder e isso passa pela falta de conhecimento.

Desta forma, assume ser importante o facto de valorizar-se os historiadores e fazedores de artes, para que se possa colher deles informações, afim de materializa- las e expandi-las para toda a sociedade. “Para que haja tais mudanças é necessário que se faça investigações documentais, é importante que se possa ter acesso às pesquisas que são feitas, para depois as inserirem nos programas de ensino, porque investir na educação é a chave para que o actual estado das coisas mude”, referiu.

Apesar de tudo, tem esperança de que durante este mandato de João Lourenço as coisas possam mudar. ”E que as nossas vozes se façam sentir, que sejamos tidos e achados num propósito que acredito ser único, comum, que é a valorização da cultura angolana e a possibilidade da sua transformação, quer nacional, quer internacionalmente”, frisou.

Jorge Fernandes, Augusto Nunes, Antónia Gonçalo e Adjelson Coimbra