“De forma alguma aceito que se diga que em Angola não há quadros” – Judith Bende

“De forma alguma aceito que se diga que em Angola não há quadros” – Judith Bende

O Reino Unido é um destino muito popular para estudantes angolanos. Apesar de não existirem estatísticas que indiquem a quantidade exacta de estudantes angolanos no país, a experiência diz que o número tende a aumentar, a cada ano, uns enviados por instituições angolanas e outros com o suporte familiar. Judith Benge, angolana, é jurista de profi ssão e gestora de estudantes internacionais no Reino Unido há mais de 10 anos. Sentou-se com o nosso correspondente em Londres e falou-nos sobre as suas experiências, numa altura em que o Governo britânico apresentou novidades para os estudantes estrangeiros naquele país

Por:Israel Campos, Londres

Quando e como é que iniciou o agenciamento de estudantes angolanos no Reino Unido (RU)? Eu iniciei esta actividade há mais de 10 anos. Fui convidada por uma senhora que geria os estudantes, na altura, a fazer parte da equipa, foi aí que comecei a exercer a actividade ofi cialmente. Empiricamente, sempre fui fazendo o trab alho para familiares e amigos que quisessem que os fi lhos viessem para a Inglaterra para aprender inglês. Em termos profi ssionais, foi mesmo há mais de 9 anos, quando fui convidada por esta senhora, que, mais tarde, apresentou-me o desafio de criar uma empresa com o mesmo objectivo. Desde lá até aqui, já lá se vão 9 anos e venho exercendo esta profissão com bastante alento, dedicação e carinho para os estudantes internacionais que tenho vindo a acompanhar.

Sendo a educação um elemento bastante importante para o desenvolvimento sustentável de qualquer nação, pensa que investir na formação de jovens angolanos em países como o RU seja uma medida bem pensada por parte das entidades angolanas? Com certeza! Se países já desenvolvidos, como a China e a Índia, colocam os seus estudantes aqui nas universidades do Reino Unido, Angola não poderia fi car para trás. Até porque as universidades inglesas estão bastante bem posicionadas a nível mundial, quer pela sua qualidade de ensino e essencialmente pela sua pesquisa. A pontuação de uma instituição académica do ensino superior é baseada na qualidade e quantidade de pesquisa que esta instituição produz, e este é o caso da maior parte das universidades na Inglaterra. Elas investem bastante na sua pesquisa e são posicionadas nesta base.

Angola tem um vasto histórico no envio de estudantes bolseiros para vários países do mundo, através de instituições distintas, conhecendo a realidade do sistema educacional do RU, acredita que os quadros formados aqui têm sido uma mais valia para Angola?

Com certeza! Porque os quadros que vêm para o Reino Unido não ficam só formados na vertente académica, mas tornam-se seres humanos melhores, para o contributo ao país, pois estando cá, durante a sua vivência, os estudantes observam como funcionam as estruturas do país de acolhimento e podem transpor estas experiências para o desenvolvimento de Angola.

Portanto, nós temos estudantes que terminaram os cursos em várias áreas como arquitectura, planeamento, etc, e tenho tido o feedback em como o aprendizado desses estudantes internacionais cá no Reino Unido tem servido para o desenvolvimento do nosso país. É necessário e bastante importante, para que Angola possa estar ao nível dos outros países, uma vez que os estudantes vêm e já têm a oportunidade de aprender em instituições internacionais e então, com os conhecimentos adquiridos, estes nossos estudantes retornam ao país e vão aplicar o que aprenderam. De todo o modo, é uma grande mais valia para Angola.

De que maneira é que avalia o nível de qualidade e exigência das instituições acadêmicas do RU?

As universidades no Reino Unido têm alta qualificação a nível do ensino superior no mundo. Como se costuma dizer, é mais do que nota 10 para estas instituições. Nós estamos só a mencionar, por exemplo, as 4 universidades inglesas que estão de entre as 10 melhores do mundo, como o Imperial College, Oxford, Cambridge, etc, e muitas outras, que apesar de não constarem do top das melhores universidades, são internacionalmente reconhecidas por uma específi ca matéria, tal como é a Universidade de Bath em economia, por exemplo. Não é em vão que o sector do ensino superior no Reino Unido providência para o país mais de 19,9 mil biliões de libras para a economia, portanto, está aproximado aos sectores da indústria automobilística e tecnologias da informação.

De um modo geral, em que estado chegam os estudantes angolanos, com o ensino médio concluído em Angola, ao RU?

Da minha experiência, eu digo que cada estudante é único. Não vou generalizar. Há uns que vêm bastante bem sólidos, eu costumo dizer que é necessário haver disciplina de estudo, então, os estudantes que já trazem uma disciplina de estudo sabem que o objectivo dos mesmos é estudar, e que eles vêm para cá estudar. Há outros que não estão bem preparados, até porque nós temos a falta de leitura entre a juventude no ensino angolano e isto afecta a preparação que os estudantes trazem para se enquadrarem na cultura de ensino do Reino Unido. De um modo geral, eu diria que o quadro é razoável.

Há os melhor preparados e os menos preparados, alinhando-se a isso a questão da dificuldade do aprendizado da língua. Costuma dizer-se que nem todo o mundo tem queda para línguas, então há sempre aqueles que aliada à fraca ou muito boa preparação do ensino médio trazido de Angola têm sérias dificuldades no aprendizado da língua, sendo que o sector da educação no Reino Unido para os estudantes internacionais diz que em 9 ou 10 meses o estudante internacional deve estar apto para aprender a língua inglesa e efectuar o chamado teste do IELTS (exame internacional de inglês) que lhe dá acesso, consoante ao resultado do teste, às universidades.

De uma maneira geral, quanto tempo é que os estudantes angolanos fazem nos cursos de língua inglesa?

Normalmente estão dentro da regra. De 10 à 12 meses, no máximo.

Quais são as maiores difi culdades em termos de adaptação para os estudantes angolanos?

A primeira delas, mesmo como já referi, é o aprendizado da língua inglesa, porque durante a minha experiência houve estudantes que reprovaram no segundo ano da universidade porque sentiram que o domínio da língua inglesa não era sufi ciente para absorverem as matérias leccionadas durante as aulas.

Portanto, a língua seria o primeiro elemento e depois as diferenças culturais, a forma de ensino, a velocidade em que o professor apresenta a matéria, depois as provas, fazer os trabalhos… é completamente diferente ao que estamos hábituados em Angola. Aliado a isto, surgem as diferenças culturais em termos de gastronomia, condições atmosféricas, que com elas acarretam, como agora estamos no início do Outono, as depressões não só para os estudantes internacionais mas também para os nacionais.

A carga horária é bastante elevada, as saudades de casa, para o caso dos internacionais, a ausência do sol, dentre outras. Tudo isto são barreiras para os estudantes. Daí a necessidade das famílias prestarem uma atenção especial e acompanhamento a estes estudantes no exterior, porque não é fácil. É mesmo um desafi o para os estudantes. Os estudantes estão aqui para estudar sim, mas todos os outros elementos têm de ser tidos em conta, porque não é mesmo fácil.

Então, a depressão entre os estudantes aqui é mesmo real? Muito real! Bastante real! E, felizmente, a nossa forma de gestão faz com que os estudantes possam aproximar-se de nós e dizerem-nos como se sentem. Os estudantes gozam de seguro de saúde privado e são logo encaminhados para os especialistas, quando necessário. Em Angola as famílias dizem que isto é “frescura”, mas não é e devemos prestar atenção redobrada sobre estes fenômenos.

Apesar dos estudantes que chegam serem, na sua maioria, maiores de idade, o acompanhamento familiar continua a ser muito importante. Como é que tem sido a interacção com os pais e encarregados dos estudantes?

De uma forma geral, tem sido positiva, mas há sempre aquela minoria em que os pais, no meu entender, enviaram os fi lhos e foi como se desfi zessem de um encargo, o que torna mais difícil o nosso trabalho, porque não há o apoio familiar. Ainda que nós trabalhemos, acompanhemos o estudante, há a necessidade premente de os pais telefonarem para os fi lhos, saberem como se estão a sentir, saberem quais são as difi culdades que estão a atravessar… É muito importante que os pais participem na formação.

Em termos de opções profissionais, quais são os cursos mais populares entre os estudantes angolanos?

Os cursos mais populares são os cursos de engenharia, business e arquitectura. Depois há um ou outro que vai para as ciências médicas, planeamento, economia e finanças, mas os mais populares são mesmos os cursos de diferentes áreas de engenharia, business, business managment, e arquitectura.

E acha que isto responde bem às actuais necessidades de uma Angola em construção? Decerto que sim. Muito embora não exista este alinhamento do quê que o Estado necessita, um programa de formação bem defi nido de que áreas são necessitadas, todos os novos quadros são bem-vindos para a necessária diversifi cação das áreas, virando atenções para a agricultura, por exemplo, tudo em prol do crescimento económico.

De que maneira é que acha que Angola poderia absorver os estudantes formados no RU?

Eu acredito que deverá haver uma coordenação saudável e consciente entre o Governo e as instituições privadas angolanas, o sector privado, mas, para tal, Angola necessitaria de um sector privado bancário para suportar os projectos destes estudantes que terminam os cursos, porque nós sabemos das difi culdades, tais como o desemprego. A estatística diz que no universo dos desempregados em Angola, os jovens representam 50%, então, como fazer para minimizar esta situação? O sector bancário, com o apoio do Estado, deverá apoiar e suportar estes jovens para então poderem contribuir para o desenvolvimento económico, através de fi nanciamento a estes jovens e as pequenas empresas.

Eu tenho lançado a mensagem para ver se as instituições que concedem bolsas de estudo em Angola se juntem, de uma forma multisectorial, para sabermos, por exemplo, de há cinco anos até aqui, quantos jovens angolanos foram formados, tanto com bolsas internas e externas? E, o mais importante, o quê que estas pessoas estão a fazer? Precisamos todos de unir forças, com o Instituto Nacional de Estatísticas, que tem feito um grande trabalho, para sabermos quem são estes jovens, o quê que estes jovens estão a fazer. Necessitamos das estatísticas porque eu, de forma alguma aceito que se diga que em Angola não há quadros. Nós temos sufi cientes recursos humanos altamente qualifi cados, muitos deles com passagem em instituições de renome internacional, então precisamos de procurar estes quadros e, em conjunto, arranjarmos formas de minimizar as difi culdades destes jovens em prol do crescimento do país.

Voltando para o RU, quais são as cidades e universidades com números mais elevados de estudantes angolanos?

Em termos de cidades, os estudantes angolanos vão mais para Londres e Coventry. Eu diria que em quase todas as universidades do Reino Unido existem estudantes angolanos. Na Escócia, Coventry, Bristol, Surrey, Oxford, etc.

Num balanço geral, com base na sua experiência, temos tido mais casos de estudantes angolanos bem sucedidos nas universidades britânicas ou o contrário?

Temos tido casos de sucesso. Os estudantes quando terminam os seus estudos aqui tentam aplicar ao máximo, até aonde sei, dos estudantes com quem mantenho contacto, aquilo que aprenderam, criando organizações não-governamentais, negócios, originando empregos, etc. Temos conhecimento de projectos bastante valiosos em termos de participação no desenvolvimento do país, com grande ênfase para a área social. Os estudantes estão bem encaminhados e a aplicabilidade daquilo que aprenderam também tem sido positiva, em nosso entender.

Depois de concluírem os seus estudos no RU, quais são as grandes aspirações dos estudantes angolanos aqui? Arranjar um emprego por aqui ou regressar de imediato para Angola?

Os estudantes angolanos no Reino Unido, na sua maioria, voltam para Angola. Em primeiro lugar, se forem bolseiros, eles assinaram uma declaração de compromisso, portanto, têm que devolver ao país o investimento que lhes foi prestado. Em segundo lugar, felizmente para Angola, segundo as regras rigorosas de imigração não tem como o estudante angolano possa permanecer no país, ele tem mesmo de voltar porque não vai conseguir um visto que permita a sua permanência no Reino Unido, salvo raras excepções, se o estudante tiver uma outra nacionalidade europeia, mas de uma forma geral não temos este fenómeno cá no Reino Unido.

Enquanto residente no Reino Unido, o que é que nos teria a dizer sobre a comunidade de angolanos residentes aqui? O Reino Unido é um país de oportunidades. Só não aproveita quem não quer, o angolano que cá reside tem a língua como uma das maiores barreiras, mas desde que esteja disposto a matricular-se em uma escola para aprender a língua inglesa, as portas estão abertas, e pode ter acesso ao ensino superior, existem os empréstimos e bolsas internas nas universidades, e podem estudar.

Houve um projecto, há uns anos, com o consulado, em que juntamos os jovens angolanos residentes e pensou-se até na possibilidade de se conceder algumas bolsas de estudos aos melhores, o que, infelizmente, não se concretizou. A comunidade qualificada, que estuda, formada, pensa, realmente, em regressar ao país. Mas a questão que se põe é a acomodação, onde é que vão viver? Em 2015 tivemos, realmente, um êxodo desta comunidade de volta para o país. Bastantes famílias decidiram voltar para Angola e ir tentar, mas com a recepção estas mesmas famílias acabaram por regressar ao Reino Unido. Este é um país de oportunidades e temos jovens a aproveitar.

Estudar no RU ainda continua a ser um investimento muito caro, sobretudo para os estudantes internacionais. De acordo com informações do Governo britânico, estudantes internacionais são o equivalente a qualquer coisa como 20 biliões de libras para a economia do país. Mesmo assim, existe ainda um processo muito burocrático para a atribuição de vistos de estudantes, apesar das altas taxas de pagamento para os serviços, como é que acha que esta situação poderia ser melhorada?

Todas as boas instituições do ensino superior cá do Reino Unido têm departamentos gigantescos de lobbying exactamente para tornar a questão de atribuição dos vistos de estudantes mais flexíveis. O secretário de Estado da Educação no Reino Unido, no Fórum Mundial da Educação, a 21 de Janeiro de 2019, deu as boas vindas aos ministros da Educação de todas partes do mundo, sabendo que o Reino Unido é um dos destinos mais populares para o aprendizado da língua inglesa. De todo o modo, a questão da imigração é algo que faz ganhar eleições. Para as regras, nós temos em mente o dia 6 de Abril de cada ano, sempre foi o dia em que nós, enquanto gestores de estudantes internacionais, aguardávamos ansiosamente para saber as novidades.

Esta é uma situação bastante preocupante que realmente afecta os nossos estudantes angolanos, tal como os outros estudantes internacionais no Reino Unido. Tenho sempre passado a mensagem para Angola para ver o que é que o Ministério das Relações Exteriores pode fazer neste sentido, talvez conversar com a Embaixada Britânica em Luanda, porque eu diria que é mesmo um grande problema porque os estudantes pagam vistos urgentes, que deveriam receber em 7 dias, e depois de três semanas os estudantes não têm os vistos consigo. Não há nada que nós a partir daqui possamos fazer senão pedir a quem de direito em Luanda para que interaja com o consulado britânico para que se ultrapasse esta situação. Já tivemos alturas de grande angústia para alguns estudantes, ao ver que as aulas iriam começar mas não tinham os seus vistos.

Existiram casos até que estudantes precisaram de mudar de instituição por causa da demora do visto. Então, eu alerto a quem de direito que veja esta situação que prejudica muitos estudantes angolanos.

Recentemente, o Governo britânico anunciou uma alteração nas regras de visto para estudantes internacionais que lhes vai permitir estar no RU mais dois anos após concluírem a sua formação académica. Acredita que esta seja uma medida tomada no sentido de se garantir sustentabilidade neste segmento num contexto pós-Brexit?

Com certeza! O Governo do primeiro- ministro Boris Johnson diz que quer atrair os melhores e mais inteligentes para o Reino Unido, dando-lhes esta oportunidade de migração qualificada. Tendo em conta a experiência de trabalho solicita aos recém licenciados, o que muitas vezes os impossibilita de conseguirem o primeiro emprego, estes dois anos de permissão de experiência de trabalho é uma incomensurável mais-valia para todos os estudantes.

Vão ganhar experiência e saber o como é que o mercado de trabalho funciona. Os estudantes que terminam este ano estão descontentes pois a regra só entra em vigor no próximo ano, mas não se pode ter tudo, então, é uma grande mais-valia e muito bem-vinda.

Acredita que o dia 31 de Outubro será, de facto, um dia que entrará para história entre as relações entre RU e a UE?

Se houver um acordo estará tudo melhor estruturado. Haverá acorsociedade dos baseados nos padrões combinados entre os países. Sem acordo, serão necessárias medidas excepcionais porque as regras deixam de ser uniformes. Será realmente catastrófico se o Reino Unido sair da União Europeia sem acordo.

Mas acredita que o dia 31 de Outubro será o dia D?

Eu acredito que sim. Tudo pode acontecer… mas a priori é mesmo no dia 31 de Outubro. Esperamos que haja um, entre parenteses, milagre, mas… será o dia 31 de Outubro.

Que eventuais impactos a saída do RU da União Europeia poderá ter para os angolanos no RU? Não haverá qualquer impacto porque o angolano continuará a ser um estudante internacional. Nada mudará. O sistema vai ser exactamente o mesmo. Mudará é para os estudantes europeus, que a partir daí também necessitarão de um visto, também passarão a ser denominados estudantes internacionais e essencialmente em termos de propinas, pois passarão a pagar o mesmo valor que os estudantes internacionais.

E sabemos que a diferença é muito alta, entre as propinas dos estudantes europeus, que pagam como nacionais, e dos estudantes internacionais…

Sim… a diferença entre as propinas é deveras abismal, uma vez que para os estudantes da União Europeia o valor das propinas ronda à volta das 9 mil libras e para os estudantes internacionais a partir de 15 ou 25 mil libras.