Pierre-Victor Mpoyo, o desenho animado

Por:Ricardo Vita

Há mais de dez anos, tomei a iniciativa de criar, com o acordo tácito do interessado, uma página Wikipedia em francês dedicada a Pierre-Victor Mpoyo. Visto que, para o meu grande pesar, os grandes homens africanos têm o infeliz hábito de não escrever memórias, « é obra de historiadores », dizia-me ele com desapego. Então sabia, apesar da erudição e sofisticação desse homem, que ele não derrogaria a essa regra antes de deixar este mundo. « Um dia escreverás para os outros o que achares útil sobre mim », contentava- se em dizer. Amadou Hampâté Bâ tinha razão, « em África, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima ». Mpoyo era um homem excepcional, não era como nenhum dos que existem hoje, e acredito que Deus quebrou o molde em que o fez. Pois certas existências são pacíficas e têm dias semelhantes, repletos de eventos privados. Mpoyo, ao contrário, dá a sensação de ter transbordado a própria vida; a vida em todas as suas formas. Ele conhecia a África profundamente; a sua vida foi enredada, de perto e de longe, na história de praticamente todos os países deste continente. Por exemplo, disse-me, já que ele foi um dos principais actores por trás dessa história que liga Angola à Nigéria para sempre, porque é que existe na Ilha de Luanda uma avenida chamada Murtala Mohammed, algo que a maioria dos Angolanos ignoram. Durante anos, contou-me anedotas requintadas sobre a sua vida; como se envolveu nas revoluções africanas, o motivo da sua simpatia pelo MPLA, o seu primeiro encontro com Savimbi na residência de Houphouet-Boigny, a sua audiência com Salazar em Lisboa, o seu Ricardo Vita* apoio à luta dos negros americanos pelos direitos civis e contra o Apartheid na África do Sul, como foi ser vizinho do presidente Bush, o pai, em Nova Iorque, o seu apoio às companhas presidenciais de Bill Clinton etc. Falava intimamente dos seus amigos políticos; Mandela, Castro, Nasser, Arafat, Kadhafi, Hassan II, Obasanjo, Sekou Touré, Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos. E dos seus amigos famosos; Elizabeth Taylor, Sophia Loren, Brigitte Bardot, Claudia Cardinale, Diana Ross, Sidney Poitier, Michael Jackson, Iman Bowie, Quincy Jones. A sua rede de contactos estendia-se até a Ásia ou a príncipes árabes e a todo o Ocidente. Casou-se com uma top model da Christian Dior, com quem teve três filhos. Mpoyo era como um personagem de romance que vivia no centro das coisas em acontecimento. Era um personagem completo, na sua riqueza e complexidade. Para a sua geração, ele foi um dos homens mais poderosos do mundo. Desenho animado, era assim que Nelson Mandela, que ele conheceu em 1952, e Fidel Castro, seu outro amigo íntimo, gostavam de chamá-lo; porque Mpoyo tinha o dom da ubiquidade e, acima de tudo, porque foi um grande pintor. Foi formado no Congo Belga, o seu país natal, e na Academia de Belas Artes de Florença, na Itália, que se tornou a Academia das Artes do Desenho de Florença. Conheceu a idade de ouro de Saint- Paul-de-Vence, essa cidade de artistas no sudeste da França, onde viveu entre 1960 e 1980, e onde conviveu com os maiores mestres das artes e das letras da época, como Picasso, Cocteau, Salvador Dalí, Chagall e Baldwin. Esse período foi o mais produtivo da sua vida artística e grandes galerias como a Galerie Bernheim-Jeune, em Paris, o representavam, e exibiu nas mais prestigiosas galerias de arte contemporânea do mundo. Mpoyo foi o primeiro Africano a participar, aos 35 anos, na Bienal de Veneza de 1968 como convidado de honra, partilhando esse privilégio com o grande pintor mexicano Rufino Tamayo, que já tinha 69 anos. Três anos antes, Mpoyo já era o único representante da África e o convidado de André Malraux, ministro da Cultura francesa da época, na Bienal de Paris em 1965. Ainda em 1965, exibiu no Japão, na ocasião de uma exposição dedicada a Tutankhamon, organizada pela NHK, a televisão japonesa. A arte de Mpoyo visa contribuir para a reabilitação do negro no mundo cultural mundial, motivo pelo qual até os sujeitos internacionais nos seus desenhos são tratados com a alma africana. Reconhecemos sempre a Linha Contínua em todas as suas pinturas e elas estão muito impregnadas da filosofia bantu. Mpoyo é autor de mais de 3000 obras. Quando conheci Mpoyo, ele já tinha perdido tudo e estava muito afectado pela doença de Parkinson. Foi num desses momentos onde os bajuladores nos abandonam, um momento onde as amizades são postas à prova, o momento em que o telefone toca menos – e quando o do Mpoyo tocava, era só para os aduladores virem tirar proveito das suas relações -, é o momento onde sabemos quem é quem. Foi no início dos anos 2000, depois do assassinato do presidente Kabila. Em 1997, Mpoyo estava com ele, como o principal arquiteto financeiro e logístico da queda do regime de Mobutu, do qual era um oponente incansável. Aprendi a conhecê-lo e desenvolvi respeito pelo homem que ele era e admiração por toda a humilhação que vivia com elegância. Vi-o combater a doença com uma coragem extraordinária e às vezes obtinha vitórias contra ela. Alguns amigos que ele me mandava contactar para pedir ajuda eram cínicos e outros ficavam abertamente felizes em vê-lo diminuído e pobre. Mpoyo foi muito rico, bilionário em dólares, possuía um avião privado e a sua generosidade era re/ conhecida. Foi um homem de negócios bem sucedido, especialmente nos sectores do petróleo e da aviação, e conheceu um grande número de chefes de estado e líderes deste mundo. Mas perdeu tudo quando entrou na política no seu país, aceitando em 1997 o cargo de ministro da Economia, Indústria e Comércio Exterior e, posteriormente, o de ministro de Estado do Petróleo, e com a morte de Laurent- Désiré Kabila. Quando este foi assassinado em 2001, Mpoyo foi um dos que lutaram para colocar Joseph Kabila no poder. Este nomeou-o ministro de Estado sem pasta, foi aí que Mpoyo se distanciou dele. Mas já tinha perdido tudo, todas as suas contas foram bloqueadas com a cumplicidade dos seus velhos amigos. Em 2008, Stevie Wonder convidoume para o seu concerto em Paris- Bercy. Quando fui vê-lo no seu camarim, minutos antes do início do concerto, transmiti-lhe os cumprimentos que Mpoyo mandara, foi graças a ele que conheci Stevie Wonder. « Victor ?! », o artista exclamou com interesse. Onde ele está? Vamos vê-lo depois do concerto! Stevie disse, emocionado, mesmo sabendo que o concerto não terminaria antes de meianoite. E Clarence Avant contoume como Mpoyo o ajudou quando faliu e perdeu tudo, inclusive a casa. É assim que vemos o número de vidas que esse homem tocou. Mas a doença venceu, Mpoyo capitulou, após uma última luta em Cuba. Ligou-me de lá, com o filho, para me dizer que tinha decido ir para a RDC nos dias que se seguiam, foi essa a sua maneira de despedir-se de mim. Morreu pouco depois em Kinshasa, em 23 de Abril de 2015, aos 80 anos. Dessa relação com ele, guardo a imagem de um homem combativo nas horas mais sombrias da sua vida. Conservo a imagem de um homem inteligente, secreto e lacónico sobre os motivos da sua queda. E sei que vivi um encontro fora do comum e uma das coisas mais tristes da experiência humana: testemunhar a queda de um gigante. Até hoje nunca soube porque é que ele morreu assim, pobre e abandonado por todos. Mas sempre me lembrarei da força da coragem e elegância desse homem. Pierre-Victor Mpoyo é uma obra enigmática.