As Mangueiras do Meu Bairro

As Mangueiras do Meu Bairro

Por: Carmo Neto

Repartia-se o dia ao meio, naquele tempo, quatro horas depois, debaixo das mangueiras do meu bairro, corrigíamos nossa caligrafia e os erros ortográficos que teimavam envergonhar nossos cadernos. Celebrávamos cartas de amor subtraídas do livro” As Cem Mais Lindas Cartas de Amor”.

Trabalhávamos as estórias do tempo em cada espaço do bairro. Apesar da linha recta no respeito aos mais velhos, tios e tias, por afinidade, nunca assimilamos porque razão uma kota gorda e gulosa tinha o nome de Felicidade. Aproveitávamos aqueles minutos compridos para rir, brincar e sonhar.

Era assim quando éramos virgens crianças. Sem retratos de tristes memórias presas na cabeça.

Ouvi dizer que as mangueiras do meu bairro estão murchas e carecas. De folhas dependuradas a caírem. Porque será? Elas guardam estórias do tamanho do mundo. Disseram que os meninos do bairro já não se sentam debaixo delas para dividir sabedoria. Dizem é da globalização. Chamar tio ao vizinho porquê?

Questionam. E as mangueiras entristecidas replicam mostrando ramos murchos e caídos. Não sei do que padecem as mangueiras da minha infância. Também já não ouvem a canção dos pássaros porque foram corridos. Algumas estão carecas e todas as folhas caídas, outras derrubadas a serem lentamente engolidas pelo sol como as mangueiras da avó Ebo. Também disseram-me que as mangueiras esconderam-se no caroço das mangas.

Fartaram-se da música bélica, porque as abelhas fugiram e deixaram de dar beijinhos as flores, nascentes das mangas sumarentas. Naquele tempo na hora da dança do vento, enquanto as folhas e os troncos bailavam, agradecidos corríamos para apanhar as mangas caídas para o chão. Disseram-me que a primeira revolta das mangueiras do meu bairro aconteceu quando amarrado pelo pescoço penduraram um homem num dos troncos. Um cidadão sem registo criminal rasurado.

Depois viram um sacristão completamente desfolhado encostado a um tronco da mangueira a roubar beijos violentos a uma futura madre. Pior ficaram as mangueiras do meu bairro quando num dia qualquer as borboletas vermelhas, amarelas e brancas saíram dos caules. Voaram sem regresso muito alto e a fazer acrobacia. Parecia festival de quadros humanos. De repente, viram uma mãe com lábios rachados a ser esbofeteada, acusada de feitiçaria. E as mangueiras deixaram de mexer as folhas.

Debaixo das mangueiras do meu bairro, as folhas e troncos dançavam ao som do vento e largavam mangas para nosso regalo. Único feitiço eram dos irmãos Kambutas que nos diziam que apareciam invisíveis. Moviam-se invisíveis ora por um lado, ora para outro. Deixavam o recado a dançar e a bater no chão com os pés e regressavam. Naquele bairro, ouvia-se diversas vezes o canto solto dos pássaros e ao som de qualquer gramofone as músicas de Urbano de Castro, Teta Lando incendiavam corações, enquanto do Brasil Roberto Carlos já era sumidade.

As vezes a noite acendia-se uma fogueira e a volta dela contavam-se estórias. Falávamos sobre aritmética, gramática e sobre donzelas de beleza radiante Ah! A Jaja parecia uma roseira gradualmente aberta durante semanas e alguns dias até se transformar em flor. Sem ginásios nem dietas. Pureza provinciana.

Os seios facilitavam o trabalho das costureiras. As ancas nenhum “personaly trainer” alcançaria tanta perfeição. Mas um dia, porque na posse de uma carta de amor, os pais cortaram-lhe o cabelo. Não tínhamos vida acanhada. Os meninos de hoje não têm mais sabedoria de hábitos e costumes, porque não têm as mangueiras do meu bairro, praça pública!…

Mahezu, ngana!