Dom Pedro defendeu as raízes africanas do tango

POR: Ricardo Vita

Para provocar os meus amigos, geralmente digo-lhes que esperarem ler um dia, sem surpresa, nas principais revistas ocidentais, que Eminem inventou o Rap. Sim, já que hoje é fácil dizer que Elvis Presley é o rei do rock’n’roll e que somos seriamente instados a amar um Salvador nascido em Nazaré, no Médio Oriente, que apresentam na forma física de um Finlandês! E enquanto os meus amigos riem, outros estão ocupados a apagar e a reescrever a História, para organizar os poderes em seu benefício. Decidir a história é organizar o poder. Aimé Césaire escreveu: « a grande sorte da Europa é ter sido uma encruzilhada, e o facto de ter sido o lugar geométrico de todas as ideais, o receptáculo de todas as filosofias, o ponto de acolhimento de todos os sentimentos fez dela o melhor redistribuidor de energia » E Cheikh Anta Diop não teve razão quando escreveu que « o negro não sabe que os seus antepassados, que se adaptaram às condições materiais do vale do Nilo, são os mais antigos guias da humanidade no caminho da civilização »? Quantos negros ainda o sabem ? Ou, ainda mais grave, quantos acreditam quando lhes é dito isso ? Mas um novo paradigma está em construção, uma certa consciência está a emergir nos mundos negros. Sartre, vendo este dia chegar, alertou sobre essa realidade da seguinte maneira: « Agora temos homens negros de pé que nos observam e desejo que sintam como eu a emoção de serem vistos. Como o homem branco desfrutou três mil anos do privilégio de ver sem ser visto, ele era o olhar puro, a luz dos seus olhos atraía tudo da sombra natal, a brancura da sua pele ainda era um olhar, a luz condensada. O homem branco, branco por ser homem, branco como o dia, branco como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação como uma tocha, revelava a essência secreta e branca dos seres. Hoje esses homens negros olham-nos e o nosso olhar devolve aos nossos olhos tochas negras, por sua vez, iluminam o mundo e as nossas cabeças brancas nada mais são do que pequenas lanternas balançadas pelo vento ». « Como você sabe, para esconder as raízes negras do tango, foi absolutamente necessário fazer o mundo inteiro acreditar que nunca houve negros neste país! Consequentemente, como os dois estão ligados, eles não podiam admitir, por um lado, a presença da herança negra nessa música e, por outro, negar a existência de Africanos negros neste país! A omissão dos dois foi, para eles, a única estratégia válida. E eles tomaram a decisão de reescrever a história do país e republicar todos os manuais escolares, da escola primária à universidade. Foi assim que falsificaram a história do país. Mas, com o tempo, percebemos que o jogo deles, que funcionou durante anos, já não funciona mais; a escotilha parece enferrujada e a verdade está a sair lentamente. Não vamos desistir, o sol está a sair. Vamos unir-nos e trabalhar juntos para trazer luz sobre uma grande mentira que finalmente está a ser revelada ». São palavras de Dom Pedro, um realizador angolano reconhecido internacionalmente, que vive em Paris, que falava durante uma entrevista sobre o seu filme, Tango Negro, que conta as raízes do chamado tango argentino. Ele faz parte dessa geração de negros conscientes, que questionam e trazem luz sobre o que queremos chamar de « Obra da humanidade », porque, como Césaire também escreveu e, como Dom Pedro sabe, não é verdade que a obra do Homem esteja terminada, ela está apenas a começar. Dom Pedro é um cineasta acostumado ao género e não apenas revelou as raízes do tango no seu espantoso documentário de 90 minutos, produzido pela TV5 MONDE, mas também abordou os silêncios da história da Argentina. Revelou a mentira das autoridades do país sobre a história oficial, que afirma que nunca houve negros na Argentina, e lembrou que eles foram exterminados, uma vez que, segundo dados históricos, estavam presentes 12 milhões de negros por toda a América Latina durante a escravatura. Aprendemos, portanto, que na Argentina, 40% dos negros compunham Buenos Aires em 1840. Especialistas dizem no filme que os negros foram usados como bucha de canhão e que poucos voltaram das guerras. O governo argentino adotou uma verdadeira política de exterminação no final do século XIX. Por instigação do Presidente Sarmiento, foram dadas ordens para erradicar tudo o que representava « barbárie », ou seja, índios e negros. E as autoridades reescreveram a história da Argentina, invisibilizando a presença negra, apesar da presença de vários monumentos com a imagem de personalidades africanas erguidos em Buenos Aires, a capital, até hoje. Mas houve alguns sobreviventes, que hoje vivem em lugares remotos, escondidos e desprezados por todos. Foram apagados da história ao longo de várias gerações. Dom Pedro foi ao seu encontro. É por isso que muitos Argentinos não sabem que os Africanos estão na base do tango, a sua música nacional. Saindo em 2013, o filme, no qual aparece o famoso músico argentino Juan Carlos Cáceres, que fez campanha por um tango tradicional, com tons africanos e que, durante 35 anos, realizou pesquisas sobre as origens africanas do tango argentino, revela e demonstra, através do lado oculto da história da Argentina, considerada até então o berço dessa música, cujos sons e coreografias traem as suas origens profundas, a mentira. Cáceres prova isso no filme tocando alguns ares de milonga, habanera e candombe, especificidades da cultura africana e que são ritmos que formam a base do tango. E aprendemos que o termo « tango » tem a sua origem no antigo reino Kongo. Viria de « Ntangu », que desde sempre significou sol, hora, tempo, espaço-tempo, época, período, etc., dependendo do contexto do uso. E surpreende menos quando se sabe que existe na província do Uige, em Angola, um bairro antigo chamado Kandombe e que, na América Latina, Candombe é uma das bases do tango. Portanto, num momento em que certas pessoas consideradas intelectuais em Angola, lusotropicalistas no fundo, ainda se perguntam se a colonização foi ou não uma coisa má, é importante voltar ao espírito deste documentário que denuncia a ocultação da África na cultura argentina. O documentário ensina-nos a falar contra uma mentira organizada e exige um exame de consciência. Assim, este filme relembra a urgência e o caminho que os negros emancipados devem seguir para não deixar apagar a sua presença no mundo e as suas contribuições na humanidade. Somente mulheres e homens como Dom Pedro, verdadeiros faróis conscientes e dedicados, salvarão a África e a sua herança. Pois, desde o lançamento do documentário, em 2013, já se evoca hoje as raízes africanas do tango nas universidades argentinas. E isso é salvar a Humanidade inteira.