O Negro no Carnaval do Rio de Janeiro

POR: Ricardo Vita

O Brasil seria o Brasil sem os negros? Vamos responder a essa importante pergunta. Em « Many Th ousands Gone », James Baldwin escreveu: « É apenas na sua música, que os Americanos (bran-cos) podem admirar porque o sentimentalismo protector limita a sua compreensão, que o Negro na América é capaz de contar a sua história. É uma história que, de outra forma, ainda não foi conta-da e que nenhum Americano está pronto para ouvir. Como é o resultado inevitável de coisas não ditas, sentimo-nos oprimidos até agora por um silêncio perigoso e ressonante; e a história é conta-da, compulsivamente, em símbolos e sinais, em hieróglifos; é revelada no discurso negro, no da maioria branca e nos seus diferentes quadros de referência. As maneiras pelas quais o Negro afectou a psicologia americana são traídas na nossa cultura popular e na nossa moralidade; à nossa distância dele, há a profundidade da nossa distância de nós mesmos. Não podemos perguntar: como realmente nos sentimos sobre ele? Essa pergunta simplesmente abre as portas do caos. O que realmente sentimos por ele está ligado a tudo que sentimos por tudo, por todos, por nós mesmos ». O que Baldwin escreveu neste texto de 1955 ainda é relevante hoje, em 2020, nas relações entre negros e brancos ligados por uma trágica história comum. No Brasil, a principal diferença no que esse ensaísta clarividente narra no seu texto sobre os Estados Unidos, seu país, seria o número de negros; eles são a maioria no Brasil, representam mais de 54% da população total. E não têm poder, a classe média e a elite são quase inteiramente compostas de brancos. Apesar disso, o país ainda se esforça para oferecer ao mundo uma imagem enganosa de uma sociedade mestiça, na qual a cor da pele não conta, mesmo que o seu racismo institucionalizado tenha sido reconhecido num relatório da ONU publicado em 2014. O carnaval é, portanto, uma das raras vitrinas para o negro brasileiro existir e para contar a sua história, é um momento privilegiado para dizer a sua verdade sobre a sociedade brasileira. Escravizados e, portanto, por força das circunstâncias, levados a participar numa celebração que os seus antigos mestres haviam herdado do cristianismo europeu e que eles celebravam com a polca e a valsa antes, esses Africanos introduziram o seu espírito nesta festa a partir de 1917 e levaram-na ao seu apogeu, estruturando-a com escolas de samba e uma verdadeira competição de talentos. Trouxeram máscaras e fantasias feitas de penas, ossos, grama, pedras e outros elementos africanos que invocavam deuses e afugentavam espíritos malignos. Esses símbolos, antigos costumes africanos, são hoje os elementos de base na criação das fantasias do carnaval carioca. Durante os três séculos de escravatura nas Américas, o Brasil foi o maior importador de Africanos, deportando sete vezes mais Africanos que os Estados Unidos. Por este país, o Africano escravizado deu o seu sangue, o seu suor, os seus músculos, a sua coragem e o seu canto; trouxe cantos misteriosos nos quais ele falou do seu infortúnio, que ele sabia pôr em ritmo. Eram cantos de um povo que tinha sido se-parado e silenciado, cantos que remontavam  ao primeiro Africano que tinha sido acorrentado na sua aldeia africana e arrastado ferozmente até aos campos agrícolas do Brasil. Eram cantos cujas vozes profundas e trêmulas nos dizem ainda como elas construíram vastos impérios económicos dos quais nunca se beneficiaram. Eram cantos de um povo em torno do qual a história e a nação brasileiras foram construídas. Eram cantos que criaram na música a mais bela expressão da experiência humana, a que o Negro ofereceu às Américas e que faz o mundo inteiro dançar sob os ritmos do samba brasileiro hoje. Esses cantos, festivos hoje, perturbavam estranhamente antigamente, diziam como o sangue e a labuta desses seres humanos escravizados haviam construído o Novo Mundo. As suas maravilhosas melodias lembram vozes do passado e do exílio. Impressionam-nos com a sua beleza que conquistou o mundo, mas a sua essência ainda transmite a mensagem dessas crianças, mulheres e desses homens que foram vergados até ao chão à força. Os cantos dão-nos um testemunho comovente através da música de um povo lasso e infeliz; uma música que analisa constantemente os séculos, que julga o vil traficante de escravos e que nunca esqueceu a África-Mãe. Nos seus poderosos refrães, ouvimos a voz do exílio, sim, mas também a voz do combate e da esperança. Ouvimos a lassidão de um povo inteiro, sim, mas também a busca de um poder transcendente e das vozes dos ancestrais africanos. O samba extravagante que nos é oferecido hoje é um legado de pessoas que a história cansou, pessoas com corações perturbados que caminharam corajosamente até à vitória física e espiritual. As suas cadências, que frequentemente se transformam em triunfo e confiança, lembram a cadeia de várias gerações de combatentes da resistência, essa cadeia passou de uma linhagem para outra. O samba foi o canto de um povo que não controlava absolutamente nada e, ainda assim, que adquiriu controlo absoluto sobre as suas mensagens codificadas, com o objectivo de instruir as gerações seguintes a continuar a luta até a vitória inevitável. Os cantos desses Africanos escravizados são acima de tudo cantos de esperança. Mas a verdadeira música negra vive no coração daqueles que realmente a cantaram e no coração do povo negro; a sua essência dificilmente é percebida pelos estrangeiros, apesar da recuperação vulgar. A música negra é como nenhuma outra. Não se deve ao talento singular de uma pessoa, nem mesmo à tradição ou linhagem. Baseia-se num poder formado sob todos os massacres, todos os golpes, todos os estupros e todos os saques que o povo negro sofreu. Nessa música, não há separação entre risos e gemidos, o batuque de navios negreiros, o rasgar de roupas e a irascibilidade. É a música de um povo cuja dignidade foi ferida. Os brancos têm um conhecido passado de exibir negros porque, historicamente, eles assumiram que o Negro foi feito para divertir e servir o Branco. Foi o que eles fizeram na Europa em jardins zoológicos até a Segunda Guerra Mundial. Organizavam grandes feiras nas quais os Africanos eram exibidos e levaram depois esses divertimentos para as colónias. E um olhar crítico acharia estranho que os líderes africanos continuem a formar dançarinos, incluindo crianças, para dançar nos aeroportos quando recebem convidados estrangeiros, sobretudo brancos. Porque a música e a dança são sagra-das na cultura africana e são apresentadas apenas perante um público informado, capaz de entender e respeitar a sua essência. Mas prefere-se perpetuar o folclore pitoresco que lembra a história do desprezo. E como o Negro foi feito para divertir o Branco, não há motivo para mudar no Brasil! Ele é exibido durante o carnaval em frente às câmeras de todo o mundo durante 5 dias, de Sexta a Terça-feira, para que possa entregar-se totalmente à maior festa capitalista do planeta. O país que lucra com isso nunca o reconheceu, a sua exploração continua e até chega-se, cada vez mais, à beira da apropriação cultural, uma vez que isso reforça as relações de dominação histórica, privando-o de controlar e lucrar com o seu património cultural. Pois, tendo entendido cedo a influência social e o dinheiro que o carnaval gera, os brancos hoje ocupam quase todas as posições de liderança mais importantes nas 12 ou 13 escolas de samba. E em 1984, construiu-se o Sambódromo, com acesso pago, para que cada escola pudesse participar na fi nal perante milhares de pessoas que vêm do mundo inteiro para apreciar o espetáculo. Em suma, é uma pena para o Brasil, porque se recusar a valorizar a maioria da sua população, essa força asfixiada, é recusa-se a fazer parte do mundo de hoje e de amanhã, onde a vitalidade da diversidade já dita os poderes.