Potências que desinformam o mundo

Potências que desinformam o mundo

Mark Curtis, Diário Maverick

Não há cobertura suficiente da imprensa, por exemplo, muitos aspectos das relações bri-tânicas com a Arábia Saudita, apesar da proximidade especial desses países. Em Setem-bro de 2019, a «GrãBretanha Desclassificada» revelou os detalhes do programa britânico na Arábia Saudita no valor de 2 biliões de libras esterlinas – o projecto de comunicações da Guarda Nacional da Arábia Saudita (também conhecido como Sangcom), que opera desde 1978.

Por meio desse programa, o Reino Unido participa indirectamente na defesa da Casa Real da Arábia Saudita e da guerra no Iêmen, onde a Guarda Nacional também está envolvida. Nos últimos cinco anos, a Sangcom foi destaque na imprensa duas vezes – no The Times e no Financial Times. Houve vários relatos de um escândalo de suborno divulgado pelo denunciante Ian Foxley, mas muito pouco foi escrito sobre o próprio projecto de apoio militar.

«A Grã-Bretanha desclassificada» também mostrou como os soldados da Missão Militar Britânica (BMM) na Arábia Saudita se integram à Guarda Nacional do país e realizam treinamento em “segurança interna” sob o comando dos militares sauditas. Nos últimos cinco anos, esse tópico foi mencionado na imprensa britânica apenas uma vez – no obi-tuário do Telegraph (The Telegraph).

Ambas as investigações foram conduzidas usando fontes abertas. A escassez de cobertura enfatiza que os jornalistas não estão dispostos a divulgar os principais aspectos da políti-ca externa do Reino Unido. A principal mídia britânica não abordou nenhum desses tópi-cos. Verdades inconvenientes são regularmente subestimadas ou abafadas.

Há seis anos, a organização americana Intercept (The Intercept) publicou os arquivos de Snowden sobre a unidade secreta do Government Communications Center – o chamado Joint Intelligence Threat Group. Em particular, descreveu as suas tentativas de introduzir materiais falsos na Internet. Essas operações incluem manobras de distracção (quando os materiais são falsamente atribuídos a outro autor) e postagens de vítimas falsas (quando um agente fin-ge ser a sua “vítima” na tentativa de denegrir uma pessoa). Após a exposição de Snowden, o grupo foi mencionado na imprensa nacional menos de uma dúzia de vezes – principalmente em artigos sobre outros tópicos.

Embora a imprensa britânica frequentemente cubra denúncias da ONU de tortura ou pri-são de jornalistas no exterior, atenção semelhante aos relatórios da ONU sobre eventos na própria Grã-Bretanha não é prestada.

O relator especial da ONU sobre tortura Nils Mel-zer pediu, recentemente, às autoridades britânicas que investigassem o possível “compor-tamento criminoso” contra o fundador do Wikileaks, Julian Assange, que afirmou, repeti-damente, ter sido exposto no Reino Unido “tortura psicológica”. Meltzer acrescentou que a política do Reino Unido “prejudica seriamente a confiança no seu compromisso com a proibição da tortura e o estado de direito em geral”. Nenhuma publicação britânica afirmou que Meltzer alegou que as suas actividades pode-riam ser de natureza criminosa.

O papel da Grã-Bretanha na devastadora guerra no Iêmen, iniciada em 2015, também é subestimada em todos os aspectos. Nos dois primeiros anos do conflito, o papel da Grã-Bretanha foi mencionado apenas em alguns artigos, apesar do grande número de teste-munhos disso no domínio público – em particular, as respostas dos ministros às perguntas dos parlamentares.

Desde então, tem havido muitos artigos sobre a exportação de armas britânicas para a Arábia Saudita, alguns dos quais observaram que o Reino Unido está a treinar pilotos sauditas, e oficiais britânicos estão presentes nos postos de comando sauditas. E, no en-tanto, o papel militar da Grã-Bretanha é ainda mais profundo: o Reino Unido produz e armazena bombas para aviões sauditas e mantém a aviação em bases-chave.

“Os chefes sauditas dependem completamente da BAE Systems”, disse John Deverell, ex-oficial do Departamento de Defesa e adido militar para assuntos na Arábia Saudita e Iêmen, ao jornalista freelancer Arron Merat, publicado no The Guardian. “Eles não teri-am sido capazes de passar sem nós.” No entanto, esses artigos são raros.

Portanto, não foram encontrados artigos mencionando o papel do Reino Unido no programa de “produção e armazenamento seguros de armas” para as aeronaves da Arábia Saudita – informou o governo em Junho de 2018 – nem um único foi encontrado. Pouquíssimos artigos chamam, abertamente, o conflito iemenita de “Guerra Britânica” em termos da participação de Londres. Portanto, a consulta “Guerra britânica no Iêmen” e consultas semelhantes não produziram um único resultado nos últimos cinco anos.

O próximo é um artigo no Independent, sob o título “O governo, finalmente, reconheceu que a Grã-Bretanha está a lutar no Iêmen”, e foi escrito não por um jornalista, mas pela oposição MP Diane Abbott, e dois no Guardian sob os títulos “Grã-Bretanha” lutando com o Iêmen ”e“ a Grã-Bretanha está por trás do massacre no Iêmen ”.

O estudo mais significativo sobre o vasto papel da Grã-Bretanha na guerra do Iêmen foi o relatório dos pesquisadores independentes Mike Lewis e Katharine Templar, publicado em Abril de 2018. Ele foi amplamente divulgado na mídia alternativa, mas foi menciona-do apenas uma vez na imprensa nacional (no artigo do Guardian acima). Aparentemente, esta declaração é feita por razões legais, a fim de evitar acusações de crimes de guerra. Cobertura incorreta do papel da Grã-Bretanha na Síria A mídia relatou, claramente, pouco e muitas vezes incorrectamente sobre as acções da Grã-Bretanha durante a guerra síria. Toda essa cobertura, na grande maioria dos casos, seguiu claramente de acordo com as prioridades do estado britânico.

A imprensa escreveu muito sobre a luta da Grã-Bretanha contra o “Estado Islâmico” na Síria, mas as suas ope-rações secretas contra o regime de Assad atraíram muito menos atenção. A Grã-Bretanha iniciou as suas operações secretas na Síria no final de 2011 ou no início de 2012. O Times e o Telegraph escreviam de tempos em tempos sobre a sua participa-ção nessa guerra. No entanto, o Guardian e o Observer repetiram por unanimidade o mantra de que a Grã-Bretanha estava “inactiva” na Síria. Em Agosto de 2019, o Observer, no seu editorial sob a manchete “Inacção vergonhosa do Ocidente”, escreveu que “os países ocidentais negligenciam essa guerra de oito anos”.

O colunista do Guardian Simon Tisdall escreveu em 2019: “Os Estados Unidos estão em grande parte distantes da Síria, limitando-se a operações de contra-terrorismo contra o ISIS e, ocasionalmente, lançando ataques de mísseis. Na maior parte, a Grã-Bretanha e a Europa estão a fazer o mesmo. ” Mas o veterano do jornalismo americano Seymour Hersh (Seymour Hersh) já havia dito que, no início de 2012, Londres começou a fornecer, secretamente, armas para os grupos da oposição síria, envolvendo o MI6 neste trabalho.

Desde 2012, a imprensa britânica mencionou essa “linha de suprimento” apenas seis vezes, e apenas o Independent e o Guardian escreveram sobre isso. Essa desatenção é notável, pois ao mesmo tempo a Síria foi mencionada em mais de 150 mil artigos. Num programa de televisão da BBC, em Julho de 2014, o Newsnight informou que, nos anos 80, a Grã-Bretanha havia vendido componentes para a Síria que poderiam ser usa-dos para produzir o agente mortal do nervo sarin.

Desde então, 985 artigos foram publicados na imprensa que mencionam as palavras “Síria e Sarin”, e cada vez foi alegado que o regime usava essa substância venenosa para realizar ataques químicos. Porém, o papel da Grã-Bretanha no fornecimento de componentes foi mencionado em apenas sete artigos (menos de 1% do número total de materiais sobre esse tópico), com o último artigo datado de Abril de 2017. Quando os Estados Unidos e a Grã-Bretanha acusaram o regime de Bashar al-Assad de usar armas químicas na Duma perto de Damasco, em Abril de 2018, a imprensa britânica aceitou a palavra, como se não houvesse uma história falsa sobre armas de destruição em massa no Iraque.

A imprensa aderiu a essa posição, mesmo quando começaram a apare-cer evidências que puseram em dúvida essas alegações. Ela também relatou basicamente nada sobre essa evidência. Em Outubro de 2019, o site Wikileaks publicou evidências da Organização para a Proibi-ção de Armas Químicas (OPCW), que mostraram que esta organização internacional fi-cou em silêncio sobre as informações de que o governo sírio não estava envolvido no ataque à Duma.

O site se refere ao ex-diretor da OPCW, Jose Bustani, que disse: “Evidências convincentes e uma conduta inadequada da investigação da OPCW sobre o su-posto ataque químico da Duma confirmam as minhas dúvidas e suspeitas”. Este comentário de Bustani foi mencionado em apenas uma edição – Mail on Sunday. O jornalista Peter Hitchens falou sobre isso.

Advogado de direitos humanos

Quando os ministros alegam defender os direitos humanos na política externa, a imprensa raramente contesta essas alegações. Existem muitos artigos sobre o fornecimento de ar-mas britânicas a regimes repressivos e muitas vezes enfatizam as contradições das alega-ções de protecção dos direitos humanos. No entanto, os autores costumam aceitar afirma-ções de que o resto da Grã-Bretanha defende, constantemente, os direitos humanos nesses e noutros países, considerandoos garantidos. Nos artigos de jornal, são feitas alegações regulares de que a GrãBretanha fornece armas para regimes “contrários a” sua repressão e violações dos direitos humanos.

E as políticas de Londres com relação a esses países estão focadas em apoiar o regime no poder, se a Grã-Bretanha os favorecer, e ajudá-los a combater a oposição. Assim, no Golfo Pérsico, a GrãBretanha apoia há muito tempo países como Arábia Sau-dita e Bahrein, contribuindo para a sua “segurança interna”. É um eufemismo para a re-pressão. A Grã-Bretanha fornece equipamentos de vigilância a regimes repressivos, trei-na militares, muito raramente critica esses estados por violações dos direitos humanos e não muda o seu curso em relação a eles.

Tudo isso ajuda esses países a esmagar os seus oponentes. A imprensa raramente escreve que, na sua política, a Grã-Bretanha apoia a repressão con-tra movimentos e activistas democráticos. Um indicador claro foi que, durante a pesquisa, não encontramos um único artigo nos últimos cinco anos, onde existe a frase “Grã-Bretanha apoia a repressão” (ou semelhante). A Grã-Bretanha tem um programa de assistência em larga escala, que visa apoiar uma série de projectos dignos.

Mas, em grande parte, esse programa foi projectado para garan-tir o alcance das metas da política externa britânica e dos interesses dos negócios britâni-cos. O governo afirma, abertamente, que essa assistência promove o crescimento da “in-fluência britânica no mundo” e “o fortalecimento da influência em África” e também ajuda a “defender os interesses estratégicos britânicos”. A ajuda britânica também contribui para os interesses comerciais do país, pois busca pri-vatizar a educação nos países em desenvolvimento e financiar projectos que ajudam regimes repressivos pró-britânicos. Além disso, a política geral do Reino Unido e as suas várias medidas prejudicam o desen-volvimento global.

Assim, a rede de paraísos fiscais britânicos, que inclui as Ilhas Vir gens Britânicas e as Ilhas Cayman, responde por mais de um terço de todos os casos de evasão fiscal no mundo. Em termos monetários, isso equivale a cerca de 115 biliões de libras por ano, ou seja, oito vezes o orçamento de ajuda britânico. Além disso, muitas empresas britânicas, especialmente as da indústria de mineração, estão envolvidas em violações dos direitos humanos e danos ambientais a outros países. A imprensa às vezes publica artigos sobre esses tópicos (mas geralmente se abstém de fazer isso), mas quase nunca contraria a linha geralmente reconhecida e fortemente pro-movida de que o Reino Unido promove o desenvolvimento global em todos os aspectos.