Medicina tradicional africana

Na manhã do dia do meu nascimento, a minha mãe foi ao hospital quando sentiu as primeiras dores do parto. Lá, médicos e parteiras pediram para ela voltar para casa quando viram que as dores tinham parado e não tendo visto mais outros sinais da chegada do bebé. « Foi um falso sinal », disse o médico responsável, « não vai nascer hoje », acrescentou.

Regressando à casa, a minha mãe, que era inteligente e tinha uma mente crítica aguçada, teve a ideia, enquanto atravessava o actual aeroporto de Mbanza-a-Kongo, de buscar outra opinião, tradicional desta vez, na casa de uma senhora famosa que todos os habitantes conheciam, pelo menos até a década de 1980. Ela não morava muito longe deste aeroporto, do outro lado, depois de atravessá- lo, quando se vem deste hospital que chamávamos na época de Vunda dya Nsaku, para ir em direção à Mangueira e ao primeiro dos dois gigantes embondeiros que a cidade tem.

A senhora morava no meio dessas casas localizadas além, a partir daquele sítio que tinha uma marca de cruz pintada no asfalto, sob a qual se dizia que um rei do Kongo, aconselhado por seus amigos católicos europeus, havia enterrado a sua mãe viva, asfixiando-a com o barro, por ter violado uma nova lei monárquica para salvar a vida de uma criança com a ciência local. A senhora que a minha mãe foi consultar e que os habitantes da cidade chamavam de nkâka (avó) Ponte-OFunda, era temida por seu conhecimento e domínio das ciências ancestrais.

Ela recebeu a minha mãe em sua casa na arte acolhedora que caracteriza o velho e sábio povo mu-kongo e pediu que ela se deitasse no seu luando para que ela pudesse se curvar e colar os seus ouvi- dos alternadamente na barriga. Foi assim que ela a auscultou. « Não vai dormir neste ventre esta noite! », exclamou a nganga (curandeira tradicional) cientificamente enquanto os seus olhos e toda a sua digna postura se mantinham serenos. « É um rapaz », informou mais, « e nascerá hoje antes do anoitecer », disse com convicção. « Regressa para casa esperar os sinais », ordenou finalmente.

A minha mãe saiu da casa da nkâka Ponte-O-Funda e não andou muitos metros quando sentiu as dores outra vez. Então deu meia-volta para regressar rapidamente ao hospital onde nasci pouco de-pois, no inicio da tarde, diante dos olhos surpresos e confusos do pessoal médico. Os Africanos estão cada vez mais a perder o seu tesouro científico ancestral. É o sinal de uma pro-funda ruptura que começou com a colonização e que continua hoje com a submissão aos valores e leis estrangeiros.

Os danos são mais visíveis nas grandes cidades e em círculos assimilados, que se consideram civilizados porque ignoram totalmente o grau da sua alienação. Para eles, civilização é sinônimo de desprezo por tudo o que se relaciona com a África e o mundo negro. Ser civilizado é saber imitar o branco até nos gestos e tiques. Não têm nenhuma referência para decifrar os seus próprios imaginários e subconsciente. Portanto, não podem valorizar a ciência da saudosa nkâka Ponte-O-Funda, mesmo que ela tenha humilhado a medicina moderna ao longo da sua vida com o conhecimento de todos.

E durante a minha infância na cidade de Mbanza-a-Kongo, onde o Estado do nosso país que queríamos mais independente proibia falar a nossa língua, Kikongo, nas escolas (sob pena de multa), a minha avó, Catarinaa- Nkengue, tratava a minha febre, dor de barriga, diarréia ou paludismo com fitoterapia e outros tipos de decocção a base de plantas que ela sabia preparar.

Toda essa riqueza ainda existe, é a herança desprezada da farmacopeia tradicional legada pelos nossos antepassados e que gerações de Africanos se transmitem oralmente em aldeias protegidas contra a aculturação e assimilação das elites colonizadas. A ciência tradicional não é desprezada pelos nossos governantes porque existem charlatães. Os charlatães estão em toda parte, mesmo entre os melhores entre nós e, como em tudo, as coisas só podem funcionar com vontade e consciência.

Essa ciência é desprezada porque nunca houve o desejo ou a vontade de valorizá-la por parte dos governantes africanos. E, como não é valorizada, isso fortalece e mantém a dependência da África na medicina estrangeira moderna. Luta-se contra ela da mesma maneira que se lutou e ainda se luta contra os nossos deuses e da mesma maneira como se despreza a cor da nossa pele escura, porque se diz que se deve sempre tender para o que é mais branco ou que se aproxima dele.

Esta ciência ancestral é, portanto, desvalorizada, porque é outro elemento da colonização e submissão da África e dos africanos. Porque a Ásia, um continente emancipado que sabe valorizar os seus conhecimentos ancestrais, sempre utilizou a sua medicina tradicional para combater doenças e tratar as suas populações. E a OMS até reconheceu a medicina tradicional chinesa em 2016 e esta goza de um crescente prestígio no Ocidente.

Portanto, é natural que a China tenha solicitado esse tesouro da sua civilização, que combinou com a medicina moderna, para lutar contra o coronavírus desde o início da pandemia. Quase 87% dos protocolos de tratamento da Covid-19, em todo o país, incluem remédios tradicionais, de acordo com a imprensa internacional.

E o país está no processo de derrotar a doença hoje. Portanto, é hora de associar curandeiros tradicionais na busca de soluções contra a Covid- 19, e outras doenças que afectam a África. Não há falta de especialistas no continente, por exemplo, o professor Raphael EKLU-NATAY já escreveu e publicou um dicionário sobre plantas medicinais africanas (Dictionnaire des Plantes Médicinales d’Afrique). Agora cabe a cada um de nós lutar contra a invisibilização desses cientistas, modernos ou tradicionais.

E vamos dar boas-vindas aos exemplos de boa vontade que Burkina Faso e Benim nos dão, dois países que decidiram usar a medicina tradicional para encontrar a melhor resposta contra a Covid-19. Ao concordar em testar os tratamentos propostos pela medicina tradicional, apesar da relutância de certas mentes colonizadas e colonizadoras, mostram-nos aqui o rosto da Nova África que se afirma.

Porque o tratamento que a medicina moderna trará ao mercado não poderá deixar de seguir a estratégia de marketing habitual. A questão financeira será sempre prioritária; lutar-seá primeiro para a paternidade e o registro das patentes e a proteção dos interesses capitalistas. Tudo isso atrasará a chegada da vacina e do medicamento e, enquanto isso, as pessoas continuarão a morrer. Portanto, a África não é obrigada a aceitar também que a saúde seja um produto de marketing. Pelo contrário, deve dar-lhe todas as suas letras de nobreza: tratar as pessoas e salvar vidas.

O continente sempre despertou cobiças e ódio por várias razões. Uma delas é a sua crescente população. Hoje, a África tem 1,3 bilhão de habitantes e terá 2,4 bilhões em 2050 e 4 bilhões por volta de 2100. Todos os observadores sabem que a demografia é um dos elementos do poder de um país, uma região ou um continente.

Se a demografia africana continua a criar frustrações e ainda há muito desejo de controlá-la, é porque o poder que ela representa perturba.

* é Pan-africanista, afrooptimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal) e do diário Libération (França). É cofundador do instituto République et Diversi-té que promove a diversidade em França e é empresário