Um país adiado

Um dos momentos mais marcantes da carreira jornalística que pretendo construir ocorreu quando me foi solicitado que acompanhasse o então governador de Luanda, Aníbal Rocha, numa das habituais jornadas de campo que realizava. Na altura, em que ainda vigorava uma guerra quente, entre o então braço armado da UNITA, FALA, e o Executivo angolano, depois de fracassados os acordos de Bicesse, inicialmente, e Lusaka, posteriormente, do outro lado havia outra fria de quem também optasse por colocar os jornalistas em lados opostos.

Para muitos, a distinção entre os jornalistas era um exercício básico. De um lado estão os jornalistas da imprensa pública e, do outro lado, os da imprensa privada. Os primeiros faziam parte do leque que tinha no Estado o encosto, responsáveis pela manutenção do ‘status quo’ e pela defesa do stabilishment.

Os da privada eram vistos como os que tudo faziam com base na maledicência, críticos inveterados e acima de tudo inimigos de um Deus maior na época, que até a alcunha de pasquins mereceram. Foi por pertencer a este pequeno grupo de postergados que acabei um dia corrido de uma viatura do Governo Provincial de Luanda, por sugestão de uma coelga ainda viva, que na altura também tinha nos colegas da chamada imprensa privada autênticos leprosos. Felizmente, com o passar dos tempos, algumas destas diferenças começaram a ser esbatidas.

Percebeuse que, independentemente do lado da barricada em que nos encontrávamos, éramos todos colegas. Todos nós fomos paridos das mesmas escolas do ensino médio, onde começamos a aprender o B+A=BA do jornalismo, alicerçados posteriormente nas redações e nas faculdades ou institutos superiores que só na época das vacas gordas acabaram por surgir. Hoje, jornalista é um só.

O mesmo que se disponibiliza para prestar um serviço público, levar a informação a todos os cantos, não contando, desde já, se está ao serviço de um órgão de capitais privados ou público. Passados varios anos, felizmente, orgulhamo-nos de sermos uma classe quase que unida, independentemente de quezilias particulares que possam subsistir entre alguns. Mas, ainda assim, continuamos a ser aquela franja onde os políticos despejam de forma instrumentalizada o fel para as suas guerras intestinais, na ressaca de uma pesada factura de um processo de paz visivelmente inacabado e uma reconciliação nacional que carece de alguns reboques.

A forma indecente como são expostas determinadas fi guras e a incapacidade de os próprios políticos entenderem que as lutas políticas da actualidade exigem um certo esmero são evidencias das feridas ainda não saradas. A luta pelo poder, por parte de quem pretende o poleiro, e a manutenção daquele que já lá se encontra não deve ser feita na base do vale tudo. Recordo-me de dois combatentes que no então Comité Intereclesial para Processo de Paz (COIEPA), reverendo Ntoni Nzinga e Dom Zacarias Kamuenho, que insistentemente diziam, na altura, que a paz não era só o calar das armas.

Era muito mais do que isso. Quem acompanha hoje os pronunciamentos dos nossos políticos, seja em espaços nobres como os de televisão, escritos em jornais, nas rádios e fundamentalmente nas redes sociais, nota que ainda existe uma distância abismal entre o que seria politicamente correcto e os exercícios de diversão que nos vão sendo exibidos.

Dezoito anos depois de se alcançar a paz, 26 anos desde o Protocolo de Lusaka e 29 de Bicesse, já era altura de nos ser dado uma forma diferente de se fazer política ou agir politicamente. Para quem num passado distante teve o azar de presenciar as acusações contra Samuel Abrigada, o ardil dos corações comidos pela FNLA, e mais recentemente as estorietas de Beneditos encarcerados e tantas outras manobras de diversão, o ideal seria que já lhe fosse oferecida uma ementa melhor. A política é uma missão nobre.

E não podemos fugir deste caminho, tendo em conta alguns bons exemplos que já passaram por este país. Nem que para isso se mande para casa velhas e novas raposas, incapazes de se adequarem ao tempo, cedendo o lugar àqueles que têm na política uma ciência que permite encontrar soluções para problemas vários. Para tal, é importante que não se encontre o bode expiatório na imprensa, que não é culpada da má formação e educação política de muitos, adiando cada vez mais o país.