Música Popular angolana e contemporaneidade

Música Popular angolana e contemporaneidade

Por: jimmy ruFino*

O desenvolvimento da música popular de Angola, assenta em pilares de história que o próprio mundo novo (do pós-descobrimentos e da instauração do colonialismo) tornou possível, dando-lhe lugar, ondas de sincretismos culturais e de interpenetrações antropológicas incisivas, nos dois sentidos de diálogo (endógenos e exógenos) que caracterizam as trocas/aquisições culturais ocorridas em intenso ambiente de interaçção cultural, plural, tendo os seus actores (os músicos nacionais) se visto à partida sujeitos a micro-condicionalismos diversos, tais como a religião cristã e uma ordem social dominada por uma visão escamoteadora da sua realidade sócio-cultural – daí e então, dominada por valores de imposição e uma visão simultaneamente maximizadora do eurocentrismo, – portanto, potencialmente propiciadoras da redução/castração da sua matriz de africanidade.

Desde a imposição do colonialismo, os angolanos foram submetidos a um abrangente ciclo de imposição/ aquisição de valores deslocados da sua essência cultural, visando a desestruturação da sua mundivivência, em abono dos eventos integrativos que caracterizaram o seu desenvolvimento subsequente, já sob condições efectivas de colónia da corôa lusitana, nomeadamente recém saída de uma purga esclavagista (finais do séc. XIX) – e lançada, de modo subalternizado, ao estágio de emergência histórica do mundo que imediatamente se verificou (a abolição da escravatura e o advento do novo mundo), num processo durante o qual a sua vontade e autonomia foram-lhe negadas, essencialmente no segmento do desenvolvimento cultural e da sua autonomia histórica, tendo em conta as condições de desigualdade de discriminação que lhe fora impostas.

Note-se que, ironicamente, esse doloroso evento lhe reservou um lugar no amplo e diverso mosaico da contemporaneidade mundial. Angola colocou, a peso de sangue e de humilhações várias, um tijolo civilizacional indelével na catedral da cultura e da história da humanidade, cujas marcas e energias, passados mais de 5 séculos à abolição da escravatura negreira, fervilham cristalina e decisivamente funcionais na ordem sócio-cultural global dos diversos continentes.

Daí que, desde essa “globalização” que não é actual, a velha globalização primitiva que desde as descobertas geográfico-culturais, instituiu usuras materiais, castrações culturais e desvirtuações civilizacionais, até ao nascimento da actual – “globalização” já adventora das aglutinações culturais, das interdependências científicas e das reformulações político-económicas, pesem embora os pendores ainda mercantilistas da tradição capitalista, da acumulação economicista sempre vigorosa porém desigual e imperial, no diapasão da concorrência e da acumulação do capital, a lucro de um monopólio exclusivo a determinado clube de nações em detrimento de outras – terem dado finalmente espaço a uma sociedade em processo de estruturação multifacética, herdeira de um legado de civilização e de cultura, em cujo dorso Angola tem, designadamente desde a mais remota antiguidade, da escravatura negreira ao advento democrático em África, as suas impressões digitais incisivamente marcadas. Notese que nos anais da contemporaneidade – essencialmente histórico-cultural e artístico-musical – a globalização constitui um edifício tão historicamente remoto, incisivo e capital, como o percurso e as obras da própria humanidade nas
suas diferentes conjunturas o podem testemunhar.

E a música angolana, sendo o segmento da sociedade em que mais potencialmente se centraram as energias fulcrais de resistência contra o colonialismo, sob a égide de uma tácita resistência cultural, faz parte desse longo e árduo transcurso de globalização, que através do amplo caldo da expansão/mundialização da sociedade colonizadora e pela via da cultura – permitiu-se fazer parte de uma interacção cultural global através da qual o sangue dos angolanos e os seus traços culturais entranharam-se na personalidade multifacética de nações que actualmente desempenham um desígnio de relevo histórico-cultural incontornável na arena global; vide os casos das américas, com as quais Angola mantém uma relação de afectiva complementaridade cultural derivada de entrecho histórico que a colonização dialecticamente permitiu, embora em condições moralmente condenáveis que caracterizaram os processos inerentes a tal circunstância.

Embora seja discutível, música angolana, costumo dizer, emancipou-se primeiramente, embora de modo apolar, em contextos exteriores ao seu microcosmo, em territórios extra-fronteiras de Angola e da sua objectivação mundivivencial, portanto, em espaços geoculturais nos quais a sua população foi integrada em condições históricoculturais forçadas, sendo obrigada a assumir a sua sobrevivência em condições de castração espiritual e de desespero existencial, dadas as condições opressivas que caracterizaram a sua inserção e desenvolvimento nos novos territórios de destino (nas américas) e nos quais a sua cultura foi também forçada a integrar-se e reproduzirse, de modo dialogante e interactivo, com outras, pese embora as condições estruturais desforáveis e coisificantes, pugnadas pelo regime social em causa, remetendo o homem a um contexto de evidente negação da sua humanidade – porque a escravatura considerava “res nullis” todos factos e aspectos que se referissem ao homem negro – uma absoluta inutilidade ou nulidade decretada visando eliminar a dignidade e toda a sentimentalidade valorativa face a tudo respeitante ao universo do homem negro.

E a sua revolução teve início, onde quer que ela teve lugar – nas américas e em Angola, em inícios do séc. XIX, na trincheira da cultura, sendo exprimida mais incisivamente nos terreiros da música e respectivas formas de artisticamente se exercer e veicular no respectivo circuito social. A música se tornara uma arma poderosa “na trincheira firme” para a assumpção da cultura e para o processo socialização revolucionária do negro então escravizado, colonizado e coisificado mesmo; nessas condições, tudo o negro perdera e foi conduzido a uma categoria de sub-humanidade. Foi, pois, – tanto lá em terras do desterro esclavagista, desenraizado, como cá na sua terra então ocupada – por vida da sua música, que o homem angolano despoletou a sua revolução rumo ao seu resgate intrínseco.

A sua primeira arma e trincheira de luta, foram portanto a música e a cultura, nas quais reencontravam a sua auto-estima, resgatavam o seu afecto colectivo e telúrico, e reforçavam a crença nas suas premissas de liberdade, apegando-se ardentemente ao seu mundo particular e aos seus valores intrínsecos. Em finais do séc. XIX, a colónia atravessava um ciclo de emergência económica que propiciava o nascimento das cidades, aliada a um florescente crescimento nos sectores produtivos, e uma consequente perspectiva de prosperidade aos actores comerciais – maioritariamente colonos e a alguns cidadãos colonizados que desenvolviam alguma actividade produtiva agrícola e não só.

Apesar do ambiente de colonização reinante, a colónia pulsava um crescimento económico que naturalmente contagiava a sua atmosfera cultural, no seio da qual os angolanos, subjugados, remetidos aos seus ambiente residenciais – os musseques e similares – aproveitaram-se da conjuntura de abundância material para reforçar a sua socialização cultural, terreno no qual o ensino e a igreja vieram também oferecer energias decisiva – deram lugar ao salto estrutural que a música popular angolana veio a conhecer de forma impetuosa, dando lugar a uma evolução sem precedentes, assente portanto em 2 eixos evolucionais: 1).

Nos alvores dos anos 1950, uma inter-relação cultural potenciadora da música como forma e veículo para a passagem de valores referentes à solidariedade nacionalista e a uma cidadania cultural que conduzisse ao um auto-reconhecimento das virtudes populares da música angolana na perspectiva do forjamento e da difusão da autonomia histórica dos angolanos e de uma identidade cultural pela via da música popular, esta que desde logo, nutrida dos seus traços clássicos e originais, foram gradualmente disseminados por vários actores singulares e colectivos na arena global da sociedade (por razões de espaço, não cito ainda actores individuais, agremiações culturais, nem locais/sítios e eventos em concreto), em busca de uma autonomia estética que despoletasse um compromisso nacionalista pela via da cultura. 2). Em meados de 1960, uma música popular fortemente permeabilizada por novos adventos estéticos, em que são intervenientes musicalidades afro-latinas. *Escritor e Crítico Literário