Cruz pesada

Há dias deparei-me com uma daquelas reportagens que faziam eco na época do conflito armado: Angola, um dos países mais ricos do mundo, mas cuja população não beneficia das suas riquezas’.

Durante mais de uma década, era assim que os meios de comunicação social no chamado Ocidente, com as televisões e jornais em destaque, narravam a miséria que se vivia no país. Eram tempos em que o ribombar dos canhões eclodiam em todos os cantos. E o esforço de guerra exigia de quem governava um maior investimento para que se atingisse a paz, roubando do Orçamento Geral de Estado uma fatia maior do que o devido, para a Defesa e Segurança, atirando para lugares sequentes sectores como a Saúde e a Educação.

Maio de 2020. Dezoito anos depois do fim do conflito armado, já não são as cadeias internacionais – apesar de continuarem em prontidão combativa- a narrarem aquilo que configura uma das maiores humilhações a que são submetidos os seres humanos: Dezenas de crianças e jovens, em Luanda, nas principais centralidades, procuram alimentos em contentores de lixo e disputam os restos até com animais.

Se, anteriormente, eram os dementes que disputavam os sobejos, o exército hoje daqueles que procuram alimentos e outros bens nos contentores é composto por pessoas supostamente sãs, mas que não têm outra alternativa por falta de meios para matar a fome dos seus filhos e familiares directos.

São imagens chocantes. E continuam a fazer furor na mente de muitos angolanos, que já não escondem o desânimo em relação ao rumo que se vai seguindo, com algumas situações acirradas pelo desemprego que continua a aumentar e as feridas descobertas pela pandemia que vai assolando o mundo.

O país que chegou a crescer a dois dígitos, com margens de progressão que atraia uma considerável nata de expatriados, parece estar de rastos. Se não está, muito distante não estará. Se o dinheiro vai e vem, como nos habituamos com os sobe e desce do preço do petróleo, que nos tornou dependentes e distante da bendita diversificação da economia, os valores é que parecem estar a regredir muito mais, embora determinados sectores da sociedade continuam com o pouco que têm a tentar salvar os que podem.

Diariamente, através das habituais lives do confinamento, artistas de vários sectores tentam atenuar o sofrimento de muitos. Foi assim como Matias Damásio, Yola Semedo, Edmazia e Puto Português, outras instituições religiosas e até pessoas anónimas vão fazendo a sua parte.

Mas, da associação que tem como missão auxiliar os poderes públicos com fins assistenciais e de utilidade pública, a Cruz Vermelha de Angola (CVA), os desígnios continuam a ser outros. Está longe dos princípios elementares que norteiam a sua actuação, como a humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, carácter voluntário, unidade e universalidade.

A cruz que se carrega na CVA continua pesada. Tão pesada que há mais de uma década, mesmo beneficiando de apoios do Estado e de outros organismos, a instituição não decola. São poucas as acções desenvolvidas, nem mesmo até no momento em que mais se esperava dela. A escolha das direcções e os interesses subterrâneos lá instalados acabam por minar todo o espírito de solidariedade e os princípios nobres que uma organização do género deveria ter.

Em alguns países, sobretudo nesta época da COVID 19, a Cruz Vermelha apareceu na linha da frente, procurando minimizar os efeitos da pandemia e ajudar os mais carenciados.

Para não destoar, tal como no passado, a nossa Cruz Vermelha volta a ser notícia por causa de gestão danosa e visitas constantes da Inspecção Geral do Estado. Ainda não dá para acreditar que, num tempo como o que vivemos, houvesse quem se quisesse apropriar até de doações para pessoas esfomeadas.

Enquanto uns buscam o que comer no lixo, aqueles que têm somente a missão de as distribuir são acusados de furtar bens que poderiam ajudar a atenuar o sofrimento de dezenas, centenas ou senão mesmo milhares. E a acusação não vem de uma pessoa qualquer, mas sim de Bibiana de Almeida.

Num país normal, como escreveu há dias um jornalista no facebook, esta mulher, que tem dedicado os anos de sua vida a salvar a vida dos mais pobres, numa seria relegada para um segundo plano perante um gestor que poucos dias depois de assumir o posto já é acusado de desviar cestas básicas. A ser provado, quem assim procede, deveria ser severamente punido, assim como os que no Kuanza-Sul, nos últimos dias, têm sido notícia por causas várias, incluindo até por suposto malbaratamento das verbas para o combate à COVID 19.

A forma como se elegem determinados dirigentes, alguns dos quais com reconhecidos laivos de política e favores, acabam sempre por tornar o nosso fardo mais pesado.