Coragem é uma palavra difícil. Quem nos pede para ter coragem, sabe, de antemão, que, no rol de coisas que nos tem a pedir, escolheu a palavra derradeira. As circunstâncias a que nos pedem para ter coragem nunca são estáveis. Relutar, levantar- se, sacudir a poeira, erguer a cabeça, é, entre coisas similares, aquilo que nos pedem, sempre que se nos apela a coragem. O mundo está de luto, e coragem deve ser o mais razoável para deixar surgir dentro de nós.
A pandemia Covid-19 elucidou-nos mais a percepção sobre a vida e sobre a morte, esta última que é insondável. É por isso que se apela a coragem, justamente para não deixar que o medo seja mais rápido, e mais corrosivo, que o vírus. Sensatez, aqui, é não sofrer por antecipação. Viver e fruir, com paz e prudência, cumprindo com as orientações do Governo de Angola e da OMS.
Deixo para o vosso gozo um dos contos mais famosos do mundo. A narrativa, intensa e virtuosa, lembra-nos as peripécias das “Mil e Uma Noites”, um dos mais antigos manuscritos árabes, cuja tradução ascendeu à centena de idiomas.
Numa bela manhã, o califa de uma grande cidade viu correr para ele num estado de grande agitação o seu primeiro vizir. Perguntou as razões desta inquietação e o vizir disse-lhe:
– Suplico-te, permite-me deixar a cidade hoje mesmo.
– Porquê?
– Nesta manhã, ao atravessar a praça para vir ao palácio, senti-me tocado no ombro. Voltei-me e vi a morte, que me olhava fixamente. – A morte?
– Sim, a morte. Reconheci-a perfeitamente, toda vestida de preto com um lenço vermelho. Ela está cá e olhou para mim para meter-me medo. Ela anda à procura de mim, estou certo disso. Vou buscar o meu melhor cavalo e poderei chegar nesta noite a Samarcanda.
– Era realmente a morte? Tens a certeza disso?
– Absoluta. Vi-a como te estou a ver. Tenho a certeza de que era ela. Deixa-me partir, peço-te.
O califa, que tinha afecto pelo seu vizir, deixou-o partir. O homem voltou a casa, pôs a sela ao primeiro dos seus cavalos e atravessou a galope uma das portas da cidade, na direcção de Samarcanda. Um pouco mais tarde, o califa, atormentado por um pensamento secreto, decidiu disfarçar-se, como fazia por vezes, e sair do palácio. Sozinho, dirigiu-se à grande praça no meio do barulho do mercado, procurou a morte com os olhos e viu-a, reconheceu-a. O vizir não se tinha enganado. Era da morte que realmente se tratava, alta e magra, toda vestida de preto, o rosto meio dissimulado sob um lenço de algodão vermelho. Ela passava de um grupo a outro no mercado, sem que dessem por ela, batendo com o dedo no ombro de um homem que organizava a sua loja, tocando o braço de uma mulher carregada de menta, evitando uma criança que corria para ela.
O califa dirigiu-se na direcção da morte. Ela reconheceu-o imediatamente, apesar de disfarçado, e inclinou-se em sinal de respeito. – Tenho uma pergunta a fazer-te, disse-lhe o califa, com voz baixa.
– Estou a ouvir-te.
– O meu primeiro vizir é um homem ainda jovem, cheio de saúde, eficaz e honesto. Porque é que nesta manhã, quando vinha para o palácio, lhe tocaste e o apavoraste? Porque é que olhaste para ele com ar ameaçador?
A morte pareceu levemente surpreendida e respondeu ao califa:
– Não queria apavorá-lo. Não olhei para ele com ar ameaçador. O que aconteceu simplesmente é que, quando por acaso esbarrámos um no outro no meio da multidão e o reconheci, não pude deixar de manifestar o meu espanto, que ele terá tomado como uma ameaça.
– Porquê esse espanto, perguntou o califa.
– Porque, respondeu a morte, não esperava vê-lo aqui. Tenho encontro com ele nesta noite, em Samarcanda. (Versão de um dos contos mais famosos do mundo, a lembrar a morte inevitável; a morte, que é o impensável que obriga a pensar.)
João Papelo