Grua em tempos da COVID

Não tem sido fácil encontrar assuntos dignos de atenção mediática desde que a COVID 19 invadiu os nossos lares. É assunto de cozinha, das ‘lives’ com todas as cores e feitios, da miséria que nos invade quase que diariamente, fazendo com que um grupo não menos significativo de angolanos recorra aos contentores de lixo para poder sobreviver.

No meio de tantos problemas e desafios, uma grua, que se encontrava no bairro Prenda, em Luanda, voltou a merecer a atenção dos citadinos e da imprensa, recebendo honras de primeira página, elogios e crítica por parte dos numerosos experts que vão abundando, muitos dos quais desconhecidos para além das diatribes urdidas nas conhecidas redes sociais.

Numa cidade em que ainda abundam muitas gruas, como resultados dos tempos mais saborosos do nosso crescimento à sombra do petróleo, a do Prenda sempre esteve presente assistindo o tempo passar. Contam- se mais de 40 anos. Tempo em que viu passar pela capital da República de Angola mais de 20 governadores, desde Pedro Fortunato Luís Manuel a Adriano Mendes de Carvalho. Alguns dos quais pesos-pesados da política, conhecidos até pela irreverência com que lidavam com os problemas do povo e as promessas várias, a maioria dos quais não cumpridas.

Durante os mais de 40 anos, de existência da grua, passamos de um regime de monopartidarismo para multipartidarismo. Assistimos a uma guerra fratricida que culminou com várias negociações e acordos de paz, como Gbadolite, Nova Iorque, Bicesse, Namibe, Abidjan, Lusaka e Luena.

Ao longo das várias fases do nosso processo político, vários ‘governos’ foram nomeados. Conhecemos quatro primeiro-ministros, desde Lopo do Nascimento, Fernando França Van- Dúnem, Fernando da Piedade Dias dos Santos, Marcolino Moco a Paulo Kassoma. E dois vice-presidentes: Fernando da Piedade Dias dos Santos e Manuel Vicente.

Em cada um dos momentos, um novo ministro da Construção dava a cara. E muitos saíram pela porta pequena sem, no mínimo, terem conseguido desmontar a famosa grua do Prenda, que sobrevivia aos períodos mais doces e amargos da nossa própria história, nem mesmo no famoso período das vacas gordas em que a nossa economia crescia a dois dígitos.

Durante mais de quatro décadas, os vizinhos da referida grua, como alguns puderam narrar, viviam sob a síndrome do medo. O medo de que uma estrutura de ferro se pudesse abater sobre as suas cabeças, provocando uma tragédia até então anunciada.

O sentimento de gratidão de muitos destes habitantes do Prenda, que viram nascer filhos, netos e até bisnetos sob a sombra de uma gigante de aço que os ameaçava, não emana da ausência de conhecimento sobre os seus direitos e deveres. Muitas das vezes, esse desconhecimento faz com que acções desenvolvidas por membros do Executivo, incluindo as mais insignificantes, sejam merecedoras de hossanas e outros cânticos com destaque nos serviços oficiosos dos principais órgãos de informação do país.

No caso da grua do Prenda, embora seja obrigação das autoridades que dirigem a província de Luanda – ou até do próprio Ministério das Obras Públicas, pela especificidade que encerrava a própria situação, não havia como os moradores e até responsáveis daquela circunscrição não destacarem e reconhecerem de forma satisfatória o papel desenvolvido pelo jovem governador Sérgio Luther Rescova.

É que quatro décadas depois, com muitas promessas à mistura, era, para muitos, pouco expectável que desta vez se resolvesse o caso, sobretudo numa fase crítica em termos económicos e com as prioridades do Executivo quase todas viradas para a COVID 19 e as suas consequências.

Os 50 milhões de Kwanzas empregues na operação poderiam servir para financiar 5.882 pessoas carenciadas no âmbito do programa Kwenda. Mas, ainda assim, optou-se por salvar vidas, uma decisão mais do que acertada e que demonstra um espírito humanista. Uma derrocada do monstro de ferro, que hoje faz parte da história, traria consequências mais nefastas para quem dirige não só Luanda como o próprio país.