Letra C

De certeza absoluta, uma das palavras que hoje mais se houve falar, pronunciar e escrever no universo é, sem dúvida, a que começa com a letra C. — Letra que de tão famoso, mas diferente dos ditos famosos que se demonstram capazes de qualquer sacrifício para alcançarem o estrelato sem se importar como lá chegar. Hoje vale tudo, tudo vale em nome da malcriadez e mediocridade que continuarão bem registados nas nuvens dos imensos provedores espalhados nas redes sociais, para uma posteridade que para alguns será vergonhoso. 

Como assunto é de cada um e de cada qual, voltemos à questão que nos anima de momento, que é a letra C; pois, mesmo sabendo que não iria encontrar o significado do COVID-19, obviamente, arrisquei-me esfolhar as páginas do dicionário do século XXI, edição de 1999, de Jacques Attali, onde, entre as 51 palavras consignadas a letra C, chamaram-me atenção oito delas que coincidem com a primeira letra da abreviatura à designação dada ao novo coronavírus, que causou infecção, surgida na cidade de Wuhan na China, em 2919, designadamente: Campo- Residência de luxo da chamada superclasse, nómada, lugar privilegiado da cocooning. 

Um amplo movimento para ele levará uma parte cada vez mais importante das populações urbanas. Reanimar-se-ão algumas aldeias. Nele surgirão serviços novos. Uma nova organização do trabalho e uma nova arquitectura serão também inventadas. 

Capital — Uma das grandes invariantes do próximo século, mesmo se outras fontes de poder vierem aparecer. Nos nossos dias, os que controlam o capital dele se servem para dominar a informação; no futuro, os que controlarem a informação dominarão o capital. A manipulação e desinformação é cada vez patente nesta era. China — Salvo se desfizer aos pedaços, a China tornar-se-á a primeira economia mundial em finais do século XXI. Para tal, ser-lhe-ia necessário abrir-se ao estrangeiro e à influência das redes dos chineses de além-mar. A sua diáspora tarar-lhe-á então tecnológico, capitais, mercados e a cultura de uma modernidade de que ela saberá, na sua três vezes milenária sabedoria, apropriar-se e que não deixará de reinventar. 

Chip- Exemplo particularmente espetacular de um futuro progresso assegurado: durante pelo menos dez anos, o número de transístores instalados num centímetro quadrado de microprocessador continuará a duplicar de dezoito em dezoito anos. Em 1971, 4004 Intel contava dois mil e trezentos elementos; em 1998, existiam cinco milhões e meio Pentium Pro, em 2010, atingiram os cem milhões. 

Para ir ainda mais longe, multiplicar-se-ão os circuitos com a ajuda de raios X, e já não com ultravioletas, para obter comprimentos de onda mais curtos. Substituir-se-á o quartzo por fluorina no vazio ou por gases inertes. Chip — Exemplo particularmente espetacular de um futuro progresso assegurado: durante pelo menos dez anos, o número de transístores instalados num centímetro quadrado de microprocessador continuará a duplicar de dezoito em dezoito anos. Em 1971, 4004 Intel contava dois mil e trezentos elementos; em 1998, existiam cinco milhões e meio de Pentium Pro, em 2010, atingiram os cem milhões. Para ir ainda mais longe, multiplicar-se-ão os circuitos com a ajuda de raios-X, e já não com ultravioletas, para obter comprimentos de onda mais curtos. Substituir-se-á o quartzo por fluorina vazio ou por gases inertes. 

Cidadão — Esta concepção elementar da cidadania é a mais audaciosa possível. Fundada sobre o simples facto de se viver num solo — nem sequer mesmo de nele se ter nascido, nem de nele se permanecer sempre e até à morte—, continuará vanguardista ainda no século XXI. No momento em que ela vier a ser admitida, surge a possibilidade de ser se cidadão de vários países ao mesmo tempo: aquele em que se vive como aquele em que já se terá vivido. Pertencerá a cada estado reconhecer para aquele que designará como seus o direito de beneficiarem de certos privilégios (educação, acesso a cuidados e encargos, rendimentos mínimos, etc.) 

Nos países que fizerem a opção de recusar conhecer estas vantagens aos estrangeiros, a cidadania tornar-se proprietário para aspirar ao estatuto de cidadão. Noutros países, ainda que deixarem ao mercado a responsabilidade de decidir, o título de cidadão poderá ser comparado a preço flutuante, determinado pelo mercado, vendendo o estado os seus passaportes como vende, actualmente, as suas divisas aos que mais oferecem. 

Cidades — Nunca morrem, mas rejuvenescem. Mesmo as megalópoles mais demenciais (como Kinshasa ou Manila) continuarão a funcionar como puderem. E por último, o Cocooning, que, ao mesmo tempo o nomadismo, e em contradição com ele, reforçar-se- á a tendência ancestral dos homens, e sobretudo até das mulheres, para procurarem refúgio num ninho, para aí se protegerem, se aconchegarem, até chegarem ao ponto de nunca mais dele quererem sair, sedentários sitiados. As tecnologias da informação permitirão preencher o seu domicílio; num grande número de profissões, as telecomunicações tornarão possível o trabalho realizado no próprio domicílio; as redes sociais multimédia permitirão comprar praticamente tudo sem se sair de casa, e efectuar qualquer operação bancária será necessário dirigirmo-nos a uma agência. Tornar-se-á igualmente possível aprender fora de casa as formas de cozinha e de todas as distracções, desportos e viagens (evidentemente virtuais). Em conclusão, poderá levar-se uma vida mais ou completa, do nascimento à morte, sem se ser obrigado a pôr o nariz de fora. 

A realidade virtual virá transformar o movimento em serenidade virtual e o cocooning em nomadismo imaginário…é caso para dizer que Jacques Attali tinha razão. Aqui uma pergunta se coloca, onde fica o transnacionalismo que segundo alguns teóricos, dá-nos o direito de deslocar de um lugar para outro? Até lá.