A Nova Medicina e os cuidados de saúde primários

A Nova Medicina e os cuidados  de saúde primários

Aferimos de mais de três enfermeiros que, nos dias menos bons da jornada de trabalho, pode-se ouvir de um colega, médico, mal-humorado, a frase altissonante: “para vocês chegarem onde eu cheguei, teriam de estudar mais”. Uma amiga, que estudou medicina, e que alinha com a mesma forma de pensar, consentindo a excesso, confirmou-me: “sim, nós estudamos mais, a nossa tarefa é mais árdua”. Ignora-se se o enfermeiro tenha ou não o curso superior.

A médica chegou mesmo a equiparar, considerando cadeiras hierárquicas, a autoridade do médico sobre o enfermeiro no mesmo plano que a autoridade do piloto sobre o assistente de bordo.

Comparação sinuosa e despropositada, de resto, como é óbvio. A vaidade, nas palavras da bailarina e coreógrafa angolana, Ana Clara Guerra Marques,  é um pecado mortal. Ocupa como a sétima posição entre os sete pecados capitais, sendo uma palavra correlata à soberba, por ironia, logo-logo depois da preguiça, que ocupa a sexta posição da lista de males. É certo que, a par dos défices que marcam a debilidade dos nossos serviços de assistência clínica (prefiro a expressão assistência clínica à assistência médica, ambas com sinonímias equivalentes), a vaidade ocupa um lugar de destaque, ou ainda que velada, dentro deste sector de actividade, criando alas entre profissionais cuja natureza de trabalho impõe: relação corporativa sólida, integrada e multidisciplinar.

É pela mesma razão que, volta e meia, os profissionais da saúde (todos eles merecem, da minha parte, todo respeito, estima  e consideração) reúnem-se em jornadas, colóquios, congressos ou mesas-redondas para discutir a humanização dos serviços de assistência clínicos, assim como os cuidados de saúde primários, dois tópicos convergentes. O segundo tópico amplamente explorado no livro, Cartas que Ninguém Leu, infelizmente pouco divulgado, do respeitado pediatra, Luís Bernardino (ver capítulo – Saúde para Angola: A Importância dos Cuidados Primários de Saúde, pág. 63 até 68).

Sucede que, a humanização dos serviços de assistência clínicos não deve começar no hospital e muito menos como resultado de uma acção formativa de dois dias num auditório com ar-condicionado ligado e portas fechadas. A humanização, também, não começa na relação horizontal médico-paciente, pressupondo apenas que um serviço humanizado implica uma relação de qualidade com o doente.

Se assim fosse, seria como construir uma casa a partir do teto. Um serviço de assistência clínica humanizado reclama, antes, uma relação de qualidade com a equipa de trabalho e, como consequência, chegará como desejado aos  cidadãos utentes.

A humanização começa na formação do carácter da pessoa muito cedo, na escola da vida e da civilização – que aceita pautar a sua conduta nos valores universais do respeito, da integridade moral e da dignidade humana, pondo ainda de fora, no caso dos médicos, o Juramento de Hipócrates (juramento solene efetuado pelos médicos, tradicionalmente, por ocasião de sua formatura, no qual juram praticar a medicina honestamente e ao serviço do bem-estar da comunidade).

No plano ambulatório, o serviço humanizado circunscreve-se, em primeiro lugar, na transversalidade da relação corporativa, instigando uma relação estável com a equipa de outros  profissionais da área, como numa orquestra de instrumentos musicais, respeitando uma coreografia que congrega mais do que fragmentar, que une mais esforço colectivo e combate a tendência de criação de ilhas, tendo em conta o exercício nobre e delicado da assistência clínica.

Seguidamente, e não menos importante, na relação horizontal e tripartida médico-enfermeiro-doente, sendo certo que o eixo central desta relação deve assentar, como refere Jaime C.Branco, Médico Reumatologista,  “na sólida confiança, que é atestada na segurança do verbo, no jeito das atitudes, no afecto da atenção, e na preocupação do  estado psicológico do paciente”.

A greve de enfermeiros que adiou mais de cinco mil cirurgias, ocorrida recentemente num dos países da CPLP, prova que os médicos sozinhos não trabalham. Quer a Ordem dos Médicos, quer a Ordem dos Enfermeiros, devem observar nos seus fóruns interesses cooperantes e  complementares, ao invés de cada ala puxar a brasa para a sua sardinha.

Para terminar, importa esclarecer que parte do título figurativo que estampa a crónica, A Nova Medicina, foi extraído do ensaio com o título homónimo, do afamado neurocirurgião português, João Lobo Antunes. A par dos países de língua portuguesa, o autor tem bastante crédito também nos países anglo-saxónicos e na Ásia. Deu aulas na Universidade de Pequim (China) e na Universidade de Columbia (EUA). O seu ensaio é dedicado à extraordinária transformação da Medicina nas últimas décadas.

A ciência, a prática e a ética desta Nova Medicina são objectos de particular atenção. Olhando o futuro, exprime-se uma incerteza a sustentabilidade dos sistemas de saúde.

João Papelo