A violência contra a mulher, pandemia sem quarentena

A violência contra a mulher, pandemia sem quarentena

Em tempos como este em que estamos a viver de incerteza, de inquietude e de ambiguidade geral devido à pandemia da Covid-19, razões de ordem sanitária levaram a um apelo contundente generalizado: ficar em casa para reduzir ao máximo a mobilidade das pessoas; ficar em casa para reduzir ao máximo a proximidade entre as pessoas; em suma, ficar em casa para evitar um contágio acelerado que gere um pico capaz de ocasionar o colapso da assistência hospitalar. 

Tudo isso afecta profundamente as vidas das pessoas em matéria económica, financeira, laboral e emocional, a par da grande dúvida sobre o que possa ocorrer às suas vidas no dia seguinte. 

Estamos a viver um processo acelerado do deslocamento dos eixos de existência no e do mundo, ao questionar o que tínhamos internalizado e normalizado como um modo de vida que vemos colapsar. 

O Momento é bem mais importante do que se supõe e remete-nos a análises filosóficas, justamente, pela profundidade do assunto. O dramático da questão é que, pela primeira vez da história do mundo, a humanidade inteira sentiu-se, simultaneamente, ameaçada em tempo real. 

A humanidade nunca viveu uma realidade deste tipo. Parece-nos uma interpelação da natureza ao ser humano que inventou o sistema mundo e a modernidade, iniciada há 500 anos com o desenvolvimento científico, tecnológico e a criação de equipamentos civilizatórios específicos, conformadores das sociedades. 

Uma etapa em que o poder patriarcal, pilar do modelo de organização social, enraizou-se e estabeleceu a superioridade do homem sobre a mulher, vetando-lhe os espaços públicos e reservando-lhe o espaço privado, entendido este como sendo a casa onde reside a família. 

Os homens monopolizaram a esfera pública com tudo o que representa o poder económico, financeiro, político e patriarcal. Para tanto, socorreram-se de legislação específica e de políticas públicas para garantir a sua supremacia sobre a mulher. 

Paralelamente, esta civilização promoveu um individualismo competitivo, de todos a competir com todos, descurando o simples facto de que numa espécie em que todo o indivíduo luta contra o outro membro da mesma espécie, esta espécie está fadada a desaparecer. 

É neste estado de coisas que explode a pandemia causada pela Covid – 19. Mecanismos sanitários, jurídicos, políticos e económicos foram prontamente desdobrados para fazer frente à pandemia, entre eles a ordem/recomendação: “FIQUE EM CASA”. 

 Esta é a grande questão. Esta é a medida que salva vidas e preserva a sociedade. Mas, também, é a medida que, como todos os antídotos, não deixa de ter efeitos colaterais perversos. A violência doméstica e inter familiar elenca-se entre os vários efeitos colaterais nocivos que ganha contornos de uma sub-pandemia. 

O confinamento junta no mesmo espaço maltratadores e vítimas, o que aumenta os factores de risco de ocorrência de episódios de violência em que as principais lesadas são as mulheres, as crianças e os idosos, com impacto diferenciado na vida das mulheres, que convivem com os seus agressores. 

 As famílias, nesse tempo de pandemia e de confinamento, converteram-se em espaços onde os elementos mais vulneráveis vivem uma situação de quase sequestro, sabendo-se que a violência pode, e não são raras as vezes, terminar em feminicídio, quando não há uma intervenção preventiva interdisciplinar, posto que o comportamento do autor de violência doméstica não muda, apenas se agrava em espiral, sedimentado em fundamentos culturais e tradicionais que, pelas mesmas razões, tendem a desacreditar a palavra da vítima. 

O dilema situa-se no facto de que as mulheres nem sempre se compreendem, ab initio, como vitimas; na maior parte das vezes, têm dificuldade de processar o comportamento abusivo no seio familiar, temem ser incompreendidas pela justiça e pelos familiares, têm vergonha de expor a sua vida pessoal e de serem desacreditadas, têm uma forte dependência emocional e, às vezes, económica; culturalmente, têm o ónus de serem as cuidadoras da família, mantendo-a unida e feliz. Logo, é muito difícil a mulher romper com esse círculo. 

A Lei contra a Violência Doméstica, no seu artigo 12.º, prevê medidas de protecção à vítima. No entanto, a sua aplicação nunca foi efectivada por conta da minimização da importância dessa sub-pandemia que apenas ameaça o sector mais vulnerável da sociedade, composto por aqueles que estão mais perto de perder a vida. Acudi-los é um princípio ético. 

“Artigo 12.º … 2. a) encaminhar a vítima de violência doméstica provisoriamente para um espaço de abrigo temporário; … 3. Nos casos em que o agente viva em economia comum, a medida de injunção a opor àquele é o seu afastamento da residência, sempre que tal medida se afigure necessária.” 

Antes da pandemia, não se cumpria o acima postulado como medidas de protecção. Durante a pandemia, a situação das vítimas agravou-se com as medidas excepcionais tomadas, limitadoras da circulação e do acesso à justiça, entre outras. Mas a vida das vítimas de violência doméstica, e a sua sanidade emocional e psicológica, importa. 

A este propósito, o secretário-geral da ONU, António Guterres, fez um apelo mundial para pedir proteção às mulheres nas suas próprias casas e o cessar fogo em todas as frentes de combate para o melhor controlo da pandemia. 

Guterres lembrou que a “violência não se limita ao campo de batalha.” …”Para muitas mulheres e meninas, a ameaça é maior justamente onde deveriam estar mais seguras. Em suas próprias casas. Assim, hoje faço um novo apelo à paz nos lares de todo o mundo” … “Nas últimas semanas, com o aumento das pressões económicas e sociais e do medo, observamos um chocante aumento global da violência doméstica. Peço a todos os governos que a prevenção e a reparação nos casos de violência contra as mulheres sejam uma parte vital dos seus planos nacionais de resposta contra a Covid-19.” 

 No caso de angola, quid juris? 

Talvez fortalecer mecanismos de prevenção; talvez estimular a criatividade para se resolverem os problemas antigos de forma inovadora e criar uma nova normalidade; talvez promover uma educação pública com novos conteúdos fundamentais capaz de impactar a todos e de produzir valores que privilegiem o mundo do cuidado em que a vida e o humanismo se tornem no critério de construção do bem estar geral. 

 Florbela Malaquias