És tu!

És tu!

Exatamente a meio daquela elipse o desenhador chefe quebrou o bico do lápis e o alcance máximo que a curva podia alcançar. Tinhas chegado!

Por causa disso a próxima era astrológica estava irremediavelmente comprometida.

Mesmo que esse acidente de calendário pouco significasse para o balanço do universo, ele já tinha mudado para sempre as nossas vidas.

Anunciaste a tua chegada como uma nova precessão, como um rearranjo cósmico desenhado por um Deus inquieto.

És tu!

Debruçado na sua esteira o arquiteto não conseguia tirar os olhos do quadrante onde aquele carbono estalou, não era todos os dias que o início do mundo se podia observar.

Vestias de branco no dia em que tive a certeza, era uma tarde junina e sentia-me abençoado apenas pela tua presença. Nem todo os mirtilos do mundo valiam um segundo do teu olhar.

Não! Eu sou bastante calmo, serenamente calmo, mesmo e sempre o fui; porque me supões equivocado?

A vida tornou mais redondos os meus sentidos  apenas os melhorou, os suavizou. Mais do que os outros, tenho um olfato suavíssimo. Sinto admiravelmente todos os aromas produzidos no céu e na terra. Tenho cheirado até muitas coisas do paraíso.

Como posso, pois, não ser teu? Atenção! Repara bem… Com que inaudita demência, com que firmeza de corpo vamos viver toda esta história?

Ser-me-ia muito simples dizer-te como primitivamente a ideia entrou no meu cérebro; talvez por essas molares diluições pelas quais o sentido do mundo resvala pelos meus pulmões adentro emprenhando o ar; mas uma vez concebida, ela nunca mais me abandonou, dia e noite e noite e dia e todas as suas correspondentes madrugadas.

Sem fim algum foi esta paixão natural e certeira. Eu estimava deveras o casal que me imprimiu nas páginas do catálogo eles nunca me fizeram o menor mal aliás sempre se dispuseram, até mais ele, a louvar a minha serena criatividade e nunca invejaram o meu dinheiro. Queriam só ajudar-me, mesmo sem saberem que eu nunca me permitiria viver uma outra solidão.

Creio que foi o meu nariz! Sim foi isso, decerto! Um dos meus dons era como o do elefante de pele dura mas olfato detalhado que se diria ser ele o próprio nervo, recoberto por uma finíssima película cristalina. Dimensão que filtra o ar e embriaga. És tu!

Cada vez que o teu cheiro me atinge, sinto-o velar-me o sangue; e assim, lentamente por palavras  muito intimamente, introduzir- se na minha mente esta ideia de arrancar tempo à sorte dos teus dias, para, dessa forma, poder sentir para sempre o teu perfume.

José Manuel Diogo

Meio palimpsesto raspado sobre “O CORAÇÃO DELATOR” de Edgar A. Poe.