Oh Felismino, sou eu!

Oh Felismino, sou eu!

Felismino estava apertadinho do coração. Já não conseguia aguentar mais as saudades que tinha. Por causa do Covid deixou de poder convidar a sua garina a o visitar. Estava sempre triste e sempre sozinho num desassossego sem fim.

O tempo passava-lhe devagar. Muito devagar. Cada dia tinha as dimensões de um ano inteiro. Inverno de manhã, Primavera à tarde, Verão na hora de jantar e um Outono tão grande que demorava toda a madrugada. Quando há solidão o tempo estica como uma chuinga mastigada por uma aldeia à procura da última molécula do seu sabor.

Era nesta mastigação saudosa que Felismino se lembrava da vida normal que tinha antes da covidagem ter alunado na baía. Era uma vida gostosa, cheia de abraços, amassos e bons pedaços. Cheia de olás, bons dias, boas tardes e alegrias. Senhora Maria, sinhô Manoel, tio Juvenal.

Na Páscoa, no Entrudo e no Natal. Tinha samba e capoeira, quizomba e mamadeira, cafuné a tarde inteira e cervejinhas no altar mor da geladeira. Beber e dançar!

Se refletindo no espelho redondo da sala, Felismino reflectia sobre a vida que não andava e na tristeza particular desse dia especial: era o aniversário da sua gazela; e ele não estava do lado dela.

Andava neste pensamento Felismino quando tocaram à campainha da porta. Quem poderia ser? Estávamos todos confinados, meninos, senhores, donzelas, doutores, polícias e soldados.

Se ninguém saia à rua mesmo assim, quanto mais tocar trim trim? Com tantos perigos espreitando, poderia ser um louco? Ou então um bandido ou um infetado foragido que o queria amedrontar. Quem seria, quem seria?

E a cabeça explodia e o coração se apertava e o mistério se adensava. Esmagadora, a emoção que o atingia escorria como uma gorda alegoria.

Nevoeiros poderosos, quase sólidos; que acompanham sem piedade em assaltos cruéis, crentes e infiéis.

Iam nesta alta frequência os pensamentos que tinha. Iam tão altos e intensos que nos seus ou- vidos guinchavam agudas inquietações.

Nisto a campainha de novo tocou. Longamente timbrou e soou e timbrou de novo e de perto. Felismino se abeirou da porta com cuidado tentando entender quem estava do outro lado.

Soltou num tímido som a pergunta requerida — Quem está aí? Estamos de confinamento. Disse ele num lamento.

Então soou uma voz doce, mais limpa que a água clara, mais bela que o azul do céu. E logo a vida lhe sorriu quando do outro lado uma voz disse baixinho naquele tom que é só seu — Oh Felismino, sou eu!

José Manuel Diogo