Vidas que seguem sem medo do novo Coronavírus

Vidas que seguem sem medo do novo Coronavírus

Nas ruas de Luanda, a expressão Coronavírus segue conhecida a “uma velocidade mil” nos bairros, barracas, restaurantes e mercados. Todos sabem da sua existência. Pela TV, Rádio e pelos jornais, os cidadãos vão conhecendo, diariamente, o número de infectados e de mortos que a doença causa ao país.

Alguns tentam desviar o foco da seriedade do assunto fazendo piadas com a pronúncia do secretário de Estado para Saúde Púbica, Franco Mufinda, limitando a discussão entre se o mais certo é dizer “Xexento” ou seiscentos. Outros criticam, algumas vezes, o nervosismo ou elogiam a eloquência da ministra Sílvia Lutukuta.

Porém, os mais avisados sabem que a discussão não se baseia na pronúncia mais afinada. A preocupação maior é o aumento do número de casos que começou com 1, 2, 3 e hoje está já rompeu a barreira das 800 ocorrências.

Com o somar dos casos, o Governo já recuou na abertura e apertou nas medidas de confinamento, com o funcionamento da função pública até às 15 horas, paralisação dos serviços de táxi às 18 horas, a não reabertura das instituições de ensino e religiosas e a redução de 50 por cento do número de funcionários nas repartições públicas e privadas.

Consta ainda, entre as medidas restrictivas, o uso obrigatório de máscara em locais públicos, com a Polícia a receber luz verde para prender e responsabilizar os cidadãos incumpridores.

Diante da medidas, muitos encaram- nas como um recolher obrigatório, o que, a ser cumprido, poderá cortar a cadeia de transmissão para o país não chegar a número de casos capaz de bloquear e criar colapso no Sistema Nacional de Saúde, como aconteceu noutros países, tal como disse o Presidente da República, João Lourenço, que é preciso que se tenha a consciência de que não é o investimento em unidades hospitalares, em meios de tratamento e em pessoal médico especializado que vai salvar, a julgar pelo que se observa nos países industrializados e mais desenvolvidos do mundo.

Estes países, notou João Lourenço, mesmo tendo inúmeros recursos financeiros, os mais modernos centros de investigação científica, a mais desenvolvida indústria farmacêutica e outras valências, lamentavelmente têm um número crescente de infectados e de mortos bastante grande.

No entanto, se uns, como o Presidente da República, encaram o actual contexto como sendo um momento de particular atenção e preocupação, outros assobiam para o lado e mostram estar nem aí para o perigo que a Covid-19 representa.

Para essa franja da sociedade, as restrições aplicadas pelas autoridades sanitárias não representam qualquer peso na consciência. Por isso, saem às ruas, dão-se abraços fervorosos, frequentam ambientes agitados, realizam festas privadas, vão às sentadas familiares e preferem gastar 100 Kwanzas num copo de cerveja do que comprar máscaras para a sua própria protecção, como é o caso de Raimundo.

Enquanto bebe uma cerveja na barraca da Mana Fatita, uma das mais conhecidas comerciantes do Zango 4, Raimundo conversa livremente com o colega de serviço. Os dois são mecânicos.

Ninguém usa máscara, entre os dois. Também não mantêm distanciamento um do outro.

Ao Longo da conversa, enquanto dão um gole na cerveja “brutalmente fresca”, os dois caem na gargalhada e tocam-se no ombro.

Interpelados pelo OPAÍS, por que razão não usam máscaras, numa altura que se regista o aumento de número de casos de Covid-19, Raimundo, o mais comunicativo, respondeu que só usa máscara quando vê a Polícia.

O medo de ser contagiado pelas pessoas ao seu redor é menor que o medo de ser retido e pagar a multa. Dai a confissão de Raimundo: “A minha máscara está no bolso. Também não posso beber com a máscara. Coronavírus não existe. A Polícia é que está só a prender à-toa”, frisou.

Abertura para a propagação da Covid- 19

A atitude de Raimundo, como diz o sociólogo Oliveira Castro, pode ser uma porta aberta para a propagação da Covid-19 e em nada ajuda nas medidas de prevenção e de combate, ao desvalorizar o perigo e as normas estabelecidas pelas autoridades sanitárias.

“É tudo uma questão de consciência. Daí que as medidas punitivas, por si só, não vão resolver esta falta de noção do perigo. Precisa- se investir muito nos canais de sensibilização e educação”, defendeu.

Raimundo não é um caso isolado. Noutro ponto da Luanda, na Praia de Cacuaco, na margem, enquanto aguardavam pelos pescadores, Zeferina e Nelinha falam da vida dura que têm levado desde o estado de emergência ao de calamidade.

As duas até têm máscaras, mas usam-nas no queixo e não propriamente para cobrir a boca e o nariz, o que as submete a uma situação de exposição diante da Covid-19.

Zeferina e Nelinha são amigas e colegas de actividade há mais de 20 anos. Por isso, dizem não ter necessidade de estarem distanciadas uma da outra. Porém, enquanto conversam, as duas partilham a garrafa de 1,5 litros de kissângua que antes haviam comprado na “Mana Fló”, a escassos metros do ponto ande estavam.

Era cada uma com o seu gole, partilhando, possivelmente, saliva a cada gota que metiam na boca. “Nós até já andamos com os nossos copos. Mas hoje esquecemos em casa. É por isso que estamos a beber só já as duas na mesma garrafa”, justificou Nelinha.

“A kissangua é gostosa”, asseguraram as senhoras. É a que lhes garantia energia enquanto aguardavam pelos pescadores artesanais que horas depois trouxeram Carapau, Kimbunbo, Corvina e bastante Sardinha.

A luta para conseguir o peixe parecia mais uma batalha. Era um empurra e empurra interminável. Ninguém respeita o sentido do distanciamento. Poucos usam máscaras e falam próximo uns dos outros.

Depois de muita luta, Zeferina e Nelinha, finalmente, conseguiram o peixe e só ajeitaram a máscara quando se retiram do local para a estrada, onde pegaram o táxi para o mercado do São Paulo, noutro extremo da cidade de Luanda.

“Naquela confusão da praia a pessoa ainda vai lembrar de meter a máscara ou vai lutar para conseguir o pão para as crianças? Oh mano, o que vai nos matar não é o Coronavírus, é a fome. É por isso que a gente já nem se lembra de cumprir o que o Governo manda”, atestou Zeferina, enquanto arrumava a caixa de peixe.

“Dinheiro do álcoolgel é para comprar pão”

Já na rotunda do Camama, Man Zeca, conhecido como um dos mais experimentados taxistas, por exercer a actividade há precisamente 13 anos, também conta a sua experiência. O homem, de um português arrojado, confundindo por várias vezes o R com o L. No pequeno Toyota Corola (conhecido também como acaba de matar), Man Zeca leva dezenas de passageiros diariamente.

O carro demonstra cansaço. A chaparia velha, cheia de remendos, pintura gasta e a “depelar”, revela as longas batalhas que o veículo vem enfrentando. Por cada corrida de táxi o passageiro paga 150 kwanzas. São tantas as moedas que Man Zeca recebe que passam de mão em mão que podem ser um veículo de transmissão e passagem do vírus.

Questionado sobre por que razão não anda na viatura com álcool-gel, para desinfestar as mãos a cada moeda que recebe, o taxista ironiza e mostra-se despreocupado com o perigo que a Covid-19 representa.

“Álcool-gel está muito caro. Também essa doença não mata tanto assim conforme o Governo está a dizer. Dinheiro do álcool-gel já chega para comprar pão para as crianças”, afirmou o taxista, que, depois de cumpridas às 06 horas de trabalho, dirigiu-se a uma barraca onde almoçou funge com bagre, sem lavar as mãos no pequeno recipiente posto à porta do estabelecimento. Outro flagrante de exposição ao risco foi visto pela equipa de OPAÍS na zona do Primeiro de Maio.

Eram precisamente 17horas e as paragens estavam completamente abarrotadas de gente. Era a volta para casa. No meio da multidão estava Paula Inocêncio, funcionária pública. Ela até estava com a máscara bem-posta e com um pequeno frasco de álcool- gel nas mãos que ela usava a cada cinco minutos.

Dada a escassez, qualquer táxi que chegava à paragem era motivo de empurrões e encostos entre os passageiros, o que facilitava um eventual contágio, caso alguém no meio daquela multidão fosse portador do vírus.

“Desde que o Governo proibiu a circulação de táxis acima das 18 h, estamos a passar mal. Essa é a nossa vida diária. Se empurrar e se encostar só para conseguir um lugar no táxi. Corremos muitos riscos. Assim é complicado”, lamentou Paula.

Dois pesos, duas medidas

Por seu lado, Luara Fernando, activista cívica, entende que a discussão deve ser abordada em duas perspectivas. A primeira, referiu, prende-se com necessidade do reforço das questões de educação e sensibilização das pessoas que, pela necessidade de prover sustento para os seus, se exponham aos riscos.

Segundo Laura Fernando, para estas pessoas deve haver uma assistência social das autoridades e apoio mediante a distribuição de materiais de biossegurança, como luvas e máscaras, para que, no exercício das suas funções, se protejam e não levem a doença para casa.

Já noutra perspectiva, a também académica compreende que as pessoas que não tendo nada para fazer na rua, ainda assim saem e não cumprem as medidas de segurança, devem ser responsabilizadas, pelo facto de estarem a colocar as suas vidas e as de outros em risco.

“Não podemos ter uma única medida para todos. É preciso saber separar o modo de actuação, sob pena de não estarmos a atacar o problema como deve ser”, concluiu.