Extra-fiscalidade: o triunfo do novo Imposto Predial

Com a entrada em vigor do novo Imposto Predial, o país vai viver uma virada irreversível no quadro da tributação do património imobiliário, que redunda na implementação de um imposto que congrega, num único instrumento jurídico, tanto a vertente estática (detenção), como a dinâmica (transmissão) da tributação dos imóveis, incluindo os rendimentos que deles provêm, deixando para a história o Código do Imposto Predial Urbano e o Regulamento do Imposto sobre as Sucessões, Doações e SISA, diplomas que remontam ao período colonial – 1970 e 1931, respectivamente.

A tributação, de um modo global, vem se mostrando um grande instrumento não só de captação de receitas, como também, e cada vez mais evidente, de intervenção do Estado na vida social, a fim de exercer certa pressão sobre os cidadãos para alcançar determinados objectivos extrafiscais, para além do arrecadatório.

A extra-fiscalidade procura mitigar o carácter tradicional da função dos impostos, visando fomentar ou dissuadir determinados comportamentos, regular o mercado e promover o desenvolvimento pela função não convencional da tributação, mediante criação de isenções, de taxas diferenciadas, reduzidas, agravadas ou progressivas, ou de qualquer tratamento mais favorável a determinadas condutas, para as quais a função puramente tributária se mostraria indiferente.

Neste domínio, o novo quadro da tributação do património imobiliário, introduzido pelo recém-publicado Código do Imposto Predial, traz uma carga extra-fiscal bastante acentuada, que se traduz na tributação, e em certos casos agravada, de propriedades inertes, ociosas, improdutivas ou desaproveitadas. Toda esta rotulação que fazemos recair sobre os imóveis nesta condição vem, tão-somente, transmitir a justa preocupação e aversão do legislador relativamente a imóveis que não são colocados ao serviço da sociedade e da economia, frustrando os objectivos que justificaram a sua aquisição ou concessão.

O Código do Imposto Predial prevê a tributação dos terrenos rústicos (para fins agrícolas, mineiros e outros), desde que estejam numa situação de improdutividade ou desaproveitamento, exigindo o pagamento anual de um montante de Akz. 10.397,00 (Dez mil trezentos e noventa e sete Kwanzas) por cada hectare.

Com esta medida, os grandes latifundiários, que detêm vasta extensão de terra não colocada ao serviço da economia, terão de pagar o imposto predial de acordo com a dimensão dos seus terrenos ociosos, isto é, na proporção do dano que causam à economia pela não utilização.

Outra questão tem a ver com as habitações já concluídas, entretanto, os seus titulares mantêm-nas fechadas, não são por eles habitadas, arrendadas ou vendidas. Encontram-se simplesmente desocupadas sem cumprir com o fim para o qual foram construídas ou adquiridas.

Para estes imóveis, prevê-se um agravamento da taxa normal em 50% pelo não uso a mais de um ano, para forçar ou instigar os seus proprietários a dar-lhes a devida utilidade. Julgamos nós que não se revela admissível, num país em que há gritantes problemas de acesso à habitação, a existência de inúmeros imóveis, em condomínios, bairros, vilas, enfim, que se encontrem inabitados por longos anos.

Contrariamente à posição adoptada pelo legislador fiscal, há quem defenda a ideia de que quem tem uma propriedade tem o direito de fazer dela o que quiser, de usar ou não usar, por se tratar de um direito absoluto, cuja restrição só se permite em casos de requisição civil temporária e expropriação por utilidade pública (art. 37.º da Constituição da República de Angola-CRA) ou, ainda, por decisão judicial.

Ora, este ponto de vista vale o que vale, porém, não é tão absoluto como se possa pensar. Entendemos nós que a tese segundo a qual “o não uso de uma propriedade também é uma forma de usar” é meramente escolástica, que habita nos manuais e de lá tem sérias dificuldades de sair, e, diga-se em boa verdade, não tem o mínimo de acolhimento no ordenamento jurídico angolano, porquanto este consagra figuras jurídicas que demonstram, claramente, aversão à propriedade ociosa ou inerte.

Senão, vejamos: A CRA, embora tenha consagrado o princípio da propriedade privada, exigindo do Estado respeito e protecção (art. 14.º), prevê igualmente o princípio da função social da propriedade (al. e) do n.º 1 do art. 89.º), que impõe o uso da propriedade de modo a cumprir com os fins para os quais foi adquirida ou concedida, para que esteja ao serviço da economia, para que frutifique e possa gerar emprego, representando, efectivamente, uma mais-valia para a sociedade.

A nível infra-constitucional, o Código Civil prevê a figura da usucapião (art. 1287.º e ss), uma forma de aquisição de direito de propriedade sobre coisas pela posse por um certo lapso de tempo, apesar do direito do primitivo titular, de acordo com as regras previstas naquele diploma legal. A Lei de Terras, por seu turno, consagra a figura da extinção e reversão do direito fundiário a favor do Estado (art. 7.º), aplicável sempre que a pessoa ou entidade a quem a concessão do terreno tenha sido feita não estiver a dar o devido aproveitamento útil e efectivo, depois de certo período aí definido, em função do fim a que está destinado.

Enfim, todas estas soluções jurídicas visam dar resposta às mais variadas formas de inutilidade da propriedade imobiliária, revelando certa repulsa do nosso ordenamento jurídico à propriedade não aproveitada.

Nesta ordem de ideias, o legislador fiscal decidiu não adoptar uma postura diferente, até porque a figura da extinção ou reversão do direito fundiário a favor do Estado é bastante agressiva, e raras vezes usada, a julgar pelo facto de grande parte dos latifúndios improdutivos existentes no país pertencerem a cidadãos com algum poder político-económico, que sempre constituiu entrave à aplicabilidade deste instrumente jurídico.

Pensamos nós, e o legislador fiscal também, que a via da tributação, desde que materializada, se revela eficiente e, de alguma forma, menos agressiva, para garantir que as propriedades ociosas cumpram com a função social e económica para a qual foram adquiridas ou concedidas. Não se pretende, com isto, combater quem tem acumulação de bens imóveis. Quer-se, pelo contrário, induzir os detentores de propriedades ociosas a materializem as finalidades que justificaram a sua aquisição ou concessão.

Trata-se, portanto, de um desincentivo à acumulação de propriedades desaproveitadas, como temos assistido um pouco por todo o país. Esta medida não é exclusiva de Angola. Outras realidades comparáveis, como o Benim, Botswana, República Centro Africana, Gabão, Costa do Marfim, dentre outras, dentro e fora do continente africano, também conferiram à tributação do património imobiliário determinados elementos indutores de comportamentos, fazendo com que se respeite a função social da propriedade enquanto princípio basilar e essencial ao funcionamento da economia.

Michel Francisco
Jurista