Adeus Jerry rawlings, o africano!

Adeus Jerry rawlings, o africano!

“O que precisamos neste país é ter certeza de que, se o próprio diabo governasse o Gana, certos procedimentos, certas práticas o impediriam de fazer o que ele quiser. Seria obrigado a fazer segundo a vontade do povo”. Aqui está uma frase dita por Jerry Rawlings, na década de 1980, que o define bem. Há nela o caracter e toda a dimensão do homem que foi descrito pelo actual presidente do seu país, Nana Akuff o Addo, ao anunciar a sua morte, como “uma grande árvore que caiu, uma perda que empobreceu o Gana”. Por ter tido o privilégio de conhecê-lo e conversar com ele, a morte de Jerry Rawlings é, para mim, uma perda para a África. Cruzava com ele regularmente, aqui e ali, mas muitas vezes de forma rápida, formal ou festiva, excepto uma que ficou na minha memória. Foi 5 anos depois dele deixar o poder, um domingo de 2006, em Paris, no hotel Warwick, rua de Berri, e tivemos uma longa conversa.

Fui vê-lo com a Sua Alteza Imperial a Princesa Marilyn Yav do Império da Lunda, recebeu-nos com a sublime esposa, Nana Konadu, e nós quatro passamos a tarde a conversar. A esposa, uma autêntica e cintilante rainha africana, estava vestida com cores alegres da cabeça aos pés; havia uma nobreza prodigiosa no seu turbante e majestade na postura da cabeça. Ele, por sua vez, vestia uma camisa branca de mangas compridas em forma de bubu, de tecido africano, que destacava o seu corpo de comando, uma calça preta e calçava sandálias. Jerry Rawlings parecia preocupado nesse dia, estado que ele não queria mostrar, mas que o seu lado militar denunciava. Ainda conseguia conversar connosco normalmente, apesar dos sinais recorrentes de aborrecimento na sua voz estrondosa, que sempre trazia de volta o mau humor toda vez que o telefone tocava e não gostava do que lhe diziam. Algo não estava bem, tinha certamente a ver com o seu país.

Mas a presença do curioso jovem africano que eu já era o entretinha bem e até aproveitei para o ouvir mais e principalmente para fazer perguntas íntimas a este homem sobre quem Jeff rey Haynes, professor emérito de política da London Metropolitan University, ao anúncio da sua morte, escreveu: “O governo de Rawlings, inicialmente caótico, depois autoritário, finalmente democrático, por bem ou por mal, conseguiu conduzir o Gana através das incertezas da década de 1970 para o equilíbrio político e equilíbrio económico comparativo dos anos 1990 e do século XXI”. A nossa conversa obviamente se concentrou na África e na política em geral. Sobre Angola, limitava-se a dizer, com o seu agradável sotaque africano, “Angola is an important country in Africa”. Rawlings era um profundo conhecedor da África. A certa altura na conversa, perguntei-lhe qual foi o principal motivo do seu primeiro golpe de Estado fracassado em 15 de maio de 1979. “Corruption!”, respondeu bruscamente. Quando pronunciou essa palavra, os seus olhos saíram com raiva controlada e via-se em todo o ser do golpista militar que ele foi a mensagem de que a corrupção é o primeiro inimigo do nosso desenvolvimento e que devemos combatê-la a todo custo.

Durante essa tarde agradável, até o início da noite, duas ou três pessoas vieram vê-los, ele e a sua radiante esposa, uma de cada vez. Cada uma vinha participar na conversa e conversávamos de coisas mais gerais, como família ou um evento particular de maior ou menor importância. Retomávamos a conversa quando a pessoa saía até a chegada da próxima, que recebíamos da mesma forma. Notei nesse domingo que naquele homem vivo, que chegou ao poder depois de três golpes de Estado, havia um amor passional pela África e pelo seu país, Gana. Deveras, compreendi nesse dia que ele tinha feito o que fez pelo seu país com o único propósito de o conduzir a uma democracia que é hoje um exemplo de transições políticas pacíficas e regulares em África. Ele foi o primeiro presidente eleito democraticamente no Gana em 1992. Rawlings mostra-nos com o seu percurso que uma decisão política voluntária e sacrificial, chamada com todos os nomes por seus detratores, pode levar a um melhor amanhã.

E o seu povo ficou satisfeito com ele, depois do que inicialmente parecia ser uma ditadura, reelegeu-o em 1996 antes da sua saída voluntária da cena política em 2001, deixando um legado económico e democrático que é continuado até hoje pelos seus sucessores e saudado por todo o mundo. Jerry Rawlings foi presidente do Gana de 1981 a 2001. Se toda a África se comoveu com a notícia da sua morte, ocorrida em Acra na quinta-feira, 12 de novembro, após uma doença e após uma semana de hospitalização, é porque ela sabe que perdeu um fi lho digno que a honrava. Se o Gana é uma democracia hoje e uma das economias mais robustas e promissoras do continente, é graças à implacabilidade de Rawlings, que quis lutar incansavelmente contra a corrupção no seu país. A força de vontade é, portanto, a chave para todo o sucesso. Rawlings criou um Estado de razão no Gana, desenvolveu o seu senso cívico e moral e lançou as bases para a sua prosperidade. Se partiu ovos para fazer a sua omelete, a partir do momento em que chegou ao poder em 1981, aos 34 anos, foi porque tinha uma só convicção: colocar o seu país no caminho certo.

Não estava orgulhoso da violência nem do sofrimento que teve que infligir aos corruptos para salvar o seu país, mas estava orgulhoso de ver o sucesso do seu país, do qual ele se tornou o fiador moral. A uma das minhas perguntas naquele domingo memorável, respondeu, de maneira profunda e geral, como um conselho dado por um irmão mais velho a um mais novo, que a chave para o sucesso também está na capacidade de escutar. Fui verificar e descobri que o poder não havia intoxicado Rawlings, mas o educou para ser um bom líder ao serviço do seu povo. Aprendeu, portanto, a escutar a alma profunda dos ganenses, o que explica o seu sucesso na gestão do seu país. O Gana é hoje um modelo para a África, e foi por esta razão que todo o nosso continente ficou comovido com a morte deste gigante africano, Jerry John Rawlings, que entrou na História com nobreza.

POR: Ricardo Vita