Há semanas, a nação angolana foi surpreendida pelo Presidente da República ao ter exercido o seu poder de iniciativa de Revisão Constitucional, as surpresas devem-se, no nosso entender, ao facto de não constar das suas promessas eleitorais e do programa de governação sufragado no pleito eleitoral de 2017.
Não obstante, trata-se, no geral, de uma iniciativa perfeitamente constitucional porquanto respeitaram-se os limites estabelecidos na Constituição para este efeito- limites formais, temporais, materiais e circunstanciais, artigo 233º, 235º, 236º e 237º respectivamente, da Constituição da República de Angola (CRA).
Entretanto, ao Chefe de Estado compete apenas exercer, à semelhança de um 1/3 dos Deputados à Assembleia Nacional (AN) em efectividade de funções, o poder de iniciativa de revisão constitucional, reservando-se ao parlamento, órgão legislativo por excelência, o poder de revisão, pois, esta é matéria de sua competência absoluta- alínea a) do artigo 161º e n.° 1 do artigo 234º da CRA, sendo que a discussão e aprovação das alterações à Lei Magna ocorre nos termos do Processo Legislativo Especial de Revisão Constitucional, tal como decorre do estatuído na alínea b) do artigo 186° e 232º e seguintes da Lei n.° 13/17, de 6 de Julho, Lei Orgânica que aprova o Regimento da Assembleia Nacional (LORAN).
O actual Sistema de Revisão Constitucional, adoptado no ordenamento jurídico angolano, é o da revisão feita pela Assembleia Ordinária seguindo-se o Processo Legislativo Especial, com maioria de 2/3, à semelhança do modelo soviético de 1936 (artigo 146º), cubano de 1940 (artigo 225º), norte-coreano de 1948 (artigo 124º), turco de 1961 (artigo 155º), moçambicano de 1975 (artigo 48º), cabo-verdiano de 1992 (artigos 283º e seguintes), guineense de 1993 (artigo 129º), etc.
Diferente, por exemplo, do sistema consagrado actualmente em Portugal, em que a competência de apreciar e elaborar a redacção final das alterações à Constituição é atribuída a uma Comissão Eventual de Revisão Constitucional- artigo 118º do Regimento da Assembleia da República Portuguesa, n.º 1/2020, de 31 de Agosto.
Todavia, de acordo com o nosso modelo, o procedimento de revisão constitucional atribui parte dos poderes à uma Comissão de Trabalho Especializada em Razão da Matéria (CERM) a quem compete, fundamentalmente, elaborar o Relatório Parecer e o Projecto de Lei de Revisão Constitucional- artigo 234º da LORAN.
Esta Comissão não nos parece ser outra se não a dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos, composta por 26 Deputados, proporcionalmente divididos em 18 do partido MPLA, 6 do partido UNITA, 1 do partido PRS e igual número para a coligação de partidos políticos CASA-CE.
Do ponto de vista geral, às Comissões de Trabalho Especializadas compete, dentre outras questões, apreciar e votar, na especialidade, as propostas de lei, os projectos de lei, os projectos de resolução, as propostas de alteração, etc- artigo 73º da LORAN, cujas deliberações são tomadas, em regra, por consenso e, excepcionalmente, por maioria absoluta dos membros presentes-artigo 69º da LORAN; Ora, tendo em conta que alguns partidos políticos, principalmente da oposição, não estão de acordo com algumas matérias objecto da proposta da presente revisão constitucional, veja-se, por exemplo, a posição da UNITA e do seu Presidente, (https://jornaldeangola.ao/ao/noticias/unita-recebeu-anuncio-da-revisao-com-surpresa/) assim como a posição do político Abel Chivukukuku e Justino Pinto de Andrade, presidente do Bloco Democrático (https://novojornal.co.ao/ politica/interior/justino-pinto-de-andrade-suspenso-da-casa-ce-depois-de-reunioes-com-adalberto-e-chivukuvuku-para-criacao-de-uma-frente-patriotica-unida-101288.html), não nos parece existir possibilidades de algum consenso na votação, ao nível da Comissão, das matérias propostas, pelo que as deliberações, a nosso ver, serão tomadas por maioria absoluta composta, sobretudo, pelo MPLA.
Vale referir que a Proposta de Revisão Constitucional deve ser discutida e votada na especialidade, pelo Plenário e nunca em Comissão, tendo em conta a natureza das normas e o facto de só no Plenário ser possível formar a maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, tal como assevera a doutrina do Professor Catedrático Jubilado da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda, no seu Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 7ª edição, p. 210, pelo que temos dúvidas se nas normas sobre competência das Comissões de Trabalho Especializadas, mormente a dos Assuntos Constitucionais e Jurídios, contidas na Lei Orgânica que aprova o Regimento da Assembleia Nacional está consagrado o poder de discutir e votar as propostas e/ou projectos de revisão da Constituição.
No essencial, as nossas dúvidas consistem em saber se a elaboração do Projecto de Lei de Revisão Constitucional pela Comissão dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos, constituída maioritariamente por um partido político e com um número total de 26 Deputados que, em termos fraccionários dá, aproximadamente, em 1/8 dos Deputados à Assembleia Nacional em efectividade de funções, não pressupõe votação na especialidade e, neste sentido, é (des)conforme com os princípios gerais de um Estado de Direito Democrático- da participação, da representatividade, da proporcionalidade e o da legitimidade político-democrática e com as normas de procedimento de votação da lei de revisão da Lex Superiori estabelecidos na Constituição da República de Angola.
Nestes termos, para evitar possíveis violações da Constituição e, nesta medida, incorrer-se em inconstitucionalidade material e orgânica, recomendamos à Assembleia Nacional (Plenário), único órgão competente e soberano em rever o pacto social que aprovamos em 2010, por intermédio dos nossos legítimos representantes eleitos no pleito eleitoral de 2008, que faça uso do poder constante no artigo 220° do seu Regimento, avocando a si a votação na especialidade, pelo Plenário, da Proposta de Lei de Revisão Constitucional.
Outrossim, que o Presidente da Assembleia Nacional, os Grupos Parlamentares e os Representantes dos Partidos Políticos e Coligação de Partidos Políticos interponham o Processo de Preparação e Realização dos Debates Sobre os Assuntos de Interesse Geral ou Público, tal como estabelecem os artigos 290° e seguintes do Regimento da Assembleia Nacional, porquanto, embora a discussão sobre vários assuntos que constituem objecto da Revisão Constitucional não esteja consignada no artigo 21º da Constituição da República de Angola, na senda do que orienta o artigo 291º da LORAN, não deixa de ser uma matéria de interesse nacional.
Porquanto, ao Plenário da Assembleia Nacional, enquanto parte da ”trilogia magna” dos órgãos de soberania, não compete apenas levantar as mãos, como se um agente regulador de trânsito em exercício de funções se tratasse, concordando ou descordando (em sede de votação na generalidade) ou se contentar com o Projecto Final de Revisão Constitucional (em sede da votação final global), elaborado pela Comissão de Especialidade; mais do que isso, compete, em geral, protagonizar todo o processo do início ao fim da iniciativa à aprovação final insusceptível de veto jurídico do Presidente da República.
Ezequiel Geremias