Acabemos com a ilusão da paz de Angola

Acabemos com a ilusão da paz de Angola

O significado literário do substantivo feminino singular “PAZ” é cessação de hostilidades, sendo sinónimo de sossego, tranquilidade e concórdia, segundo Alfredo Camacho e António Tavares, em O Nosso Dicionário, obra editada em Angola pela Plátano Editora. Note-se que, na mesma obra, os autores definem concórdia como “união de vontades”, “boa harmonia” e “acordo”.

Ora, uma ideia ilusória de paz é a do paraíso retratado em algumas brochuras, com destaque para aquelas que ilustram pessoas sorridentes, aparentemente nutridas, limpas, num ambiente natural, frutífero, em entretenimento com animais ferozes. Esse retrato duma terra em paz terá nutrido a esperança das crianças, jovens e velhos que, no tempo da guerra, cantavam “queremos paz”. Queriam aquele cenário.

Não menos ilusória é ilustração dos mosteiros construídos distantes das zonas urbanas, longe dos barulhos do trânsito rodoviário, afastados das praças e mercados populosos, longe do “corre- corre” dos hospitais, do barulhento ambiente de compra e venda nos cabrités e similares.

O silêncio dos conventos, templos e santuários indicia uma paz que não pode traduzir o barulho que as confissões provocam no interior de quem ouve. Assim, a imagem de lugar cheio de paz pode estar em contraste com os tumultos que inundam os corações dos que ali clamam, in surdina, por socorro, cada qual com a sua guerra interior.

Sem desprimor ao calar das armas, ao fim da guerra e à reconciliação entre os oponentes, é preciso que a paz signifique poder ser-se apartidário e apresentar livre e responsavelmente opiniões sobre o MPLA ou sobre a UNITA e não ser rotulado como bajulador ou inimigo. Não teremos paz, de facto, se a famigerada reconciliação nacional não for suficiente para partilharmos as riquezas equitativamente, se não servir para emitirmos opiniões, favoráveis ou contrárias a alguém sem sermos molestados e quase linchados por isso.

Calaram-se, literalmente, as armas de fogo; Cessaram as hostilidades bélicas. Entretanto, se o país parece um campo de guerra e não um campo de concorrência (guerra e concorrência não são sinónimos), então, não temos a paz que sonhamos. Prova disto estará, eventualmente, nas hostilidades hodiernas que impedem a realização do sossego ante a criminalidade, da tranquilidade no sustento das famílias e da concórdia no multipartidarismo. Pior é que mal se pode apelar ao ideal segundo o qual “é preciso fazer a guerra para acabar com a guerra”, no caso, a guerra contra os causadores dos males sociais.

Angola, em todas as suas formas de representação ou estratificação social, precisa ver renovado ou regenerado o sentido semântico de PAZ, de tal sorte que não signifique somente cessação de hostilidades. Temos de alcançar o sossego nos bairros que mais sofrem com a criminalidade. Temos de garantir a tranquilidade e a regularidade do atendimento público nos serviços estatais, como o BPC, por exemplo, e demais instituições e serviços que, vocacionadas a satisfazerem determinadas necessidades das populações, são para elas tremendos factor de transtornos.

Os partidários e os apartidários, como os ateus e os cristãos, podem, e devem, conseguir trabalhar na mesma empresa, em plena concórdia, sem ter que omitir as suas opções e opiniões. É possível, desde que o cristão não imponha ao ateu as suas crenças, desde que o ateu não ridicularize a fé alheia; se o apartidário não exigir mais do que lhe é de direito, e se o partidário não considerar os direitos uma bênção só para aqueles com quem tem vínculos consanguíneos e/ou de compadrio, a paz entre os angolanos pode ser menos ilusória, a concórdia pode ser um facto.

A “união de vontades” e a “boa harmonia” acima referenciadas não podem significar igualdade de vontades. Mesmo do ponto de vista bíblico-doutrinário, é união que se prega, e não igualdade, reitere-se. Para melhor compreensão, deve-se interpretar que tal como várias rodas dentadas podem harmonizar-se no mecanismo de um relógio de corda, a Bíblia assevera que há diversos dons que devem cooperar na prossecução dum objectivo comum.

Sublinhai que nem a paz de Cristo deve ser sinónimo de absoluto silêncio. Para os leitores da Bíblia Sagrada, só para exemplificar, e mormente para os fãs do Príncipe da paz, ela jamais deve pressupor ausência de problemas, mesmo quando o Santíssimo Mestre, citado no Livro do Evangelho Segundo São João (capítulo 14, versículo 27), diz: «Dou-vos a minha paz» – palavras do mesmo Mestre que, noutra citação, disse, e eu cito: «No mundo tereis aflições…». Fim de citação!

Ora, decerto, a paz de Cristo não ancora na inexistência de problemas ma sim na garantia do Seu perdão, protecção e socorro, quando escapar a tranquilidade ou assaltar alguma tentação. A paz é ilusória onde há hospitais sem médicos, medo e descrédito dos órgãos de defesa e segurança, lixo hospitalar junto às residências e outros tantos males sociais.

A paz, mormente a interior, não deve ser ilusória

Por: Manuel Cabral