A menina que só queria ser ela mesma

No dia em que a minha filha completou mais um aniversário, decidi fazer-lhe a pergunta essencial: «O que queres ser quando cresceres?» Ela olhou-me com ar espantado e respondeu-me com toda a certeza, como se não fosse possível haver outra resposta. «Quero ser eu mesma!». Nenhuma outra resposta teria o condão de me deixar mais chocado e mais preocupado do que esta. Olhei para ela durante largos minutos. Na minha cabeça, vi passar o meu melhor argumento para a dissuadir daquela perigosa decisão.

«Não, minha filha. Tu não podes ser tu mesma. Não sabes tu que vivemos na era da estandartização? Que somos todos produtos semelhantes de uma mesma máquina que produz artigos em massa? Todos temos que seguir um mesmo padrão e quem ousar sair dele é descartado e lançado fora.

Os padrões começam com a beleza. Há números específicos para o busto, para a cintura, para as ancas. Ai de ti que sejas mais baixa, que tenhas a pele mais escura, ou as ancas mais finas do que a norma. Serás considerada feia. Serás ostracizada, humilhada. Nunca poderás ser, por exemplo, apresentadora de TV, o rosto de uma marca ou a porta-voz de uma instituição. Viverás com dúvidas e receios sobre ti mesma. Para te ajudar a superar a tua depressão, a sociedade vai te vender dietas, produtos de beleza sem fi m e acabarás os teus dias fechada num ginásio ou a apanhar injecções para ter o busto certo, o nariz perfeito, ou as ancas na medida. Não, filha, não podes ser tu mesma.

Na escola, chegará um dia em que terás de escolher que curso seguir. Numa sociedade estandartizada, as opções não são muitas e para ti, que és mulher, menos ainda. Jurista, enfermeira ou professora são as opções que terás pela frente. Nada de pensares em ser astronauta, paleontóloga, ou cientista. Nada disso. Nem sequer sabemos onde se estuda isso. Agarra o que há e não ouses pensar em ser tu mesma.

Se escolheres ser artista, siga os modelos que já existem. A sociedade vai te dizer que ama a originalidade, mas só te amará se a tua voz for igual a da cantora X, se os teus escritos forem iguais aos do escritor Z, se o teu estilo os fizer recordar o do artista Y. Enfim, não poderás ser tu mesma. Estuda todos os artistas da tua arte, sobretudo os famosos, imita-os, seja igual e terás sucesso. Não te iludas. Nem mesmo aqueles seres excêntricos que vês a desfilarem na televisão da nossa casa são verdadeiramente eles mesmos. Eles são simplesmente, novos produtos das grandes indústrias. Quando são bem aceites, rapidamente se tornam no novo padrão. Vá por mim, filha! Eles também não são eles mesmos.

Se optares pela política, perceberás que a sociedade está dividida em grupos. Se não escolheres nenhum, os de um lado acusar-te-ão de pertencer ao outro lado e vice-versa. Assim, sofrerás represálias de ambos os lados. Portanto, minha fi lha, para não caíres em desgraça ou acabares empurrada a um grupo que não foi a tua escolha, escolha um dos lados. Não saias dos carris, nem cries novos carris.

À medida que fores crescendo, terás os padrões das idades. A sociedade vai te convencer que há uma idade própria para namorar, uma idade certa para noivar, e a idade apropriada para casar. Ai de ti se ousares em passar destas idades. A sociedade cobrará de ti ferozmente, humilhar-te-á, chamar- te-á «velha». Verás memes e brincadeiras nas redes sociais sobre a tua idade e, até mesmo, sobre algo tão íntimo quanto a tua menopausa. Não te poderás irritar, dirão que é por seres solteira, que é por seres velha, e por isso estás frustrada. Se, por fim, decidires ter um parceiro, e ele for mau, terás de o suportar, porque todos saberão que ele te fez um favor ao livrar-te de uma velhice de solidão e de sofrimento. Não, minha filha, tu não serás capaz de ser tu mesma.

Ouça, filha, o que o teu pai te diz, livra-te da dores e angustias futuras e garanta-me o sossego que mereço para a minha velhice. Não sejas tu mesma. Seja igual. Seja alguém que já existe e terás mais chances de uma vida tranquila. Sem emoção, é verdade, nem surpresas, nem prazer; mas sem problemas e dores de cabeça.»

Olhei para a minha filha e nem cheguei a dar-lhe a resposta, ela já estava distraída com outra coisa qualquer, talvez estivesse a sonhar com o seu próprio futuro. Calado, lá bem no fundo, sonhei também com um futuro em que ela poderá ser ela mesma.

Por: Sérgio Fernandes