Uma vida marcada pelas drogas

Uma vida marcada pelas drogas

As drogas continuam a fazer vítimas e apesar dos apelos sobre as suas consequências na saúde, tende a se tornar num problema de saúde pública. Jovens perdem-se, alguns precocemente, neste mundo que é fácil entrar e difícil sair. Conheça a história de pessoas (ex)viciadas que falaram em exclusivo ao Jornal OPAÍS, e que foram resgatadas pela Associação Cultural de Jovens Cristo no Coração, uma ONG que se dedica a esta luta: das drogas e do alcoolismo

A busca da identidade própria e a separação dos pais, entre outros factores podem levar os jovens a se envolverem com as drogas e o crime, contou Walter Teixeira, de 36 anos, que nasceu na rua Ndunduma, município do Sambizanga. A sua viagem ao mundo da droga começou ainda na adolescência, brincando com armas de fogo, como brinquedo. O antigo integrante do ex-grupo de marginais HDA do São Paulo, que pertencia ao Tanger, recorda que depois decidiu formar o seu próprio grupo em companhia de um amigo conhecido por “Dé Fumo”, já falecido. No seu histórico pessoal, consta a sua participação em vários assaltos à mão armada e lutas de gangues.

A prática de tais acções foi acompanhada com o consumo drogas simples, como liamba, que veio a substituir por pesadas como cocaína. Em função da sua acção delituosa, acabou por ser privado da liberdade ao ser encarcerado na Cadeia Central de Luanda. O pior estava por vir. Foi condenado a sete anos de prisão maior e, mais tarde, foi transferido para a Cadeia de Viana para dar sequência ao cumprimento da pena. No entanto, o seu processo de reabilitação social nesta cadeia teve de ser interrompido, abruptamente, por ter participado numa rebelião entre gangues rivais. Foi transferido para a cadeia do Bentiaba, ex-cadeia de São Nicolau, na província do Namibe.

Um ano depois, voltou à Cadeia de Viana. Em 2013, voltou a participar em rixas entre grupos na cadeia. Desta vez, a repercussão foi “tão grande que foi notícia nas cadeias televisivas do país”. Para evitar situações do género, a direcção do Serviço Penitenciário ordenou que fossem transferidos para a recém-inaugurada cadeia de Calomboloca, em Catete. Uma cadeia com um sistema de vigilância mais reforçado. Neste local, Walter Teixeira conseguiu o seu primeiro emprego, atendendo aos seus conhecimentos de culinária e de condução de viatura. Passou a fazer parte dos quadros da cozinha e, como motorista, distribuía a comida aos blocos, até concluir a pena de sete anos. “Depois de solto, tinha muitas confusões de `guerras´ entre gangues, porque era praticamente um jovem com distúrbios mentais. Sem beber sou uma pessoa, mas quando bebo me transformo noutra. Eu era usuário de drogas, tabacos, liamba e bebia por excesso”, disse.

“Conheci muitos bandidos que já não fazem parte deste mundo”

A mesma sorte de continuar a fazer parte deste mundo não teve um dos irmãos de Walter Teixeira que, segundo conta, não roubava. As suas acções estavam circunscritas a luta entre as gangues. Ele tem gravado ainda na memória o nome de muitas pessoas que estavam no mundo do crime que acabaram por perder a vida. “Conheci muitos bandidos que já não fazem parte deste mundo. Também perdi um irmão nessa vida ele não mexia, mas era de grupos de luta. Ele participou numa troca de tiros contra a Polícia, alvejou um senhor inocente e foi morto pela população”, lamentou. Tentando refazer a sua vida, Walter Teixeira procurou pela segunda vez a Associação Cultural Jovens Cristo do Coração, que resgata jovens envolvidos no mundo das drogas.

A primeira vez que teve contacto com o centro foi em Dezembro de 2018, por intermédio de um sobrinho que também passou por lá. Depois de ter conseguido se manter sóbrio por dois anos voltou a consumir álcool, o que lhe trouxe alguns problemas. Decidiu regressar ao centro há mais de duas semanas para o seu próprio bem e da sua família. Pois, já foi casado e tem três filhos, um de 16 anos, 15 e quatro anos. “A vida das drogas não leva a lado nenhum, apenas nos leva à sepultura ou à cadeia. E as lamentações das pessoas nos levam a ficar malucos.

Vamos deixar essa vida”, aconselhou. Gizela de Sousa, de 36 anos, assume-se como alcoólatra e, por isso, acorreu ao Centro de Toxicodependente e Alcoólatras acima mencionado. “Primeiro comecei a consumir cerveja, depois vinho até me tornar numa alcoólatra”, frisou. Segundo ela, sempre que não tinha dinheiro para beber vendia as suas roupas, louças e outros bens materiais de casa. Quando já não teve o que vender passou a endividar-se. Esta militar esteve na eminência de ser desmobilizada, porque aparecia no seu local de trabalho bêbada todos os dias. “Sou militar e isso quase que custou o emprego. Sou mãe de um casal que estão com o pai e minha família me tem ajudado. Estou há três meses aqui no centro”, disse.

Consumidor de liamba e de whisky aos 10 anos

Já o pequeno Paulinho Tomás, de 10 anos, conta que foi parar ao centro por causa de fumar e beber. Segundo o garoto, que diz que sempre viveu na rua, os seus amigos é que lhe davam o cigarro e as bebidas whisky e the best. Órfão de pai, foi levado pela avó ao centro a fim de ser ajudado. Paulino disse que se encontra bem ao lado de outras crianças que aí se encontram e não pretende mais fugir. Por sua vez, Juventina Silva, de 32 anos, estudante do 4º ano do curso de Gestão e Marketing na Universidade Gregório Semedo, conta que tem problemas mentais e também foi alcoólatra. Ela já esteve internada na Psiquiatria de Luanda, saiu e voltou a ter uma recaída. Mas por causa da pandemia o hospital não está a receber novos pacientes, pelo que teve de acorrer, há quatro meses, ao centro em que está internada. “A minha família me apoia. Os meus irmãos estão constantemente aqui e como já estou quase recuperada, consigo passar os finais de semana em casa e retorno sempre às Segundas-feiras. Actualmente tenho um filho que vive com a minha irmã”, contou.

Jovens Cristos do Coração aguardam pelo apoio do Estado

O presidente e fundador da Associação Cultural Jovens Cristos do Coração, reverendo Arnaldo Kassumba, explicou que a sua organização dedica-se a programas de prevenção e o combate às drogas, à delinquência e à prostituição infanto-juvenil. Criado a 4 de Abril de 2001, a Associação Cultural Jovens Cristos do Coração foi reconhecida um ano depois de ter começado as suas actividades no Sambizanga, no ex-mercado Roque Santeiro. Na altura, era o epicêntrico da delinquência e do consumo de drogas até mesmo de tráfico. O mesmo internava jovens que consumiam drogas e trabalhavam em parceria com o Hospital Psiquiátrico e o Sanatório. Arnaldo Kassumba contou que o projecto vai mais além e combate também drogas no seio das crianças.

“Também demos conta que independentemente de proteger esses meninos para a sua inserção na vida escolar eles também consomem drogas”, disse. Por outro lado, explicou que muitas dessas crianças, além dos familiares as levaram ao Centro Cultural, o Estado também faz o mesmo, devido ao convénio que têm, entretanto, estão esquecidas. Fez saber que algumas crianças que estão hoje no centro vieram da área social do município da Maianga.“Infelizmente esse trabalho é muito sério e muito árduo. Deveria o Estado olhar para Associação Cultural Jovens Cristos do Coração e dar uma cabimentação orçamental para suprir as nossas necessidades”, sugeriu.

Contou que a sobrevivência do centro vem da parte dos sócios, além de que são uma congregação. Por causa das dificuldades, às crianças que vêm com as suas famílias e já carregam certas patologias psíquicas têm uma contribuição para poder ajudar o crescimento do centro e suprir as necessidades“. Aqui também temos funcionários, duas cozinheiras três enfermeiros, dois administrativos e aqueles colaboradores que trabalham para proteger os outros jovens, devido às brigas”, disse. Salientando que essas pessoas são chefes de família e precisam ser remuneradas. Daí que a sobrevivência do Centro Cultural é por conta própria, através das quotas dos seus membros.

Mais de 20 mil jovens já passaram pelo centro

O reverendo Arnaldo Kassumba fez saber que desde a criação do projecto já passaram mais de 20 mil jovens, sendo um projecto que arrasta multidões e muito solicitado. Segundo o responsável, por ano a associação chega a receber mais de 1.000 jovens, sendo que muitos ficam internados devido aos problemas de distúrbio mental. Alguns fazem o acompanhamento ambulatório. Fez saber que a associação não recebe apenas jovens da capital de Luanda, mas também de fora do país que já passaram em centros de reabilitação no exterior. “Temos jovens aqui que para a sua reabilitação já passaram em Cuba, África do Sul, Lisboa e outros. E o tipo de drogas que lá consumiam não sei, porque são jovens que vêm com princípio de esquizofrenia e são super agressivos”, afirmou. Entre as drogas preferidas dos jovens angolanos disse ser a cocaína, craque e a mais frequente é a liamba. “Eles gostam muito desse tabaco e lhes desnorteia. Perdem a direcção da família, da escola, perdem tudo e acabam por ser marginais, gatunos, quase inúteis na sociedade” disse.

“Os maiores usuários das drogas não são pessoas que vivem em situações vulneráveis”

O reverendo Arnaldo Kassumba disse ficar triste quando certos painéis apontam que os maiores usuários das drogas são pessoas que vivem em situações vulneráveis, pessoas que não têm nada, filhos de camponeses que infelizmente não têm nada para comer. “Eu fico triste, porque sou filho de camponês e quando se cai numa discriminação como esta é complicado. Então, nós recebemos aqui na Associação Cultural filhos de deputados só para as pessoas não terem que dizer que só filhos de pobres é que mais consomem drogas”, contou. Explicou que alguns jovens com dinheiro que vêm de fora abusam do poder financeiro, aproveitando-se daquilo que os pais têm, porque só eles conseguem comprar a craque, cocaínas que são drogas caras, sendo que os nossos compram liamba e uns recorrem a gasolina, outros a diluentes e colas e uns ainda fabricam as drogas que fazem com plantas. Sublinhou que a cura do filho do camponês é fácil, porque não são esquizofrénicos e aqueles que têm muito dinheiro dão muito trabalho. E o Hospital Psiquiátrico sabe disso. O Reverendo Arnaldo Kassumba apelou ao Estado para visitar o centro. “São muitas dificuldades desde alimentação, medicação, assistência dos profissionais, entre outras.