A matemática das palavras

A matemática das palavras

Para início de “discussão” sobre a fiscalização dos actos do governo, impõe-se questionar se a proposta de alteração parcial da Constituição foi feita pelo Presidente da República, enquanto Chefe de Estado ou pelo Presidente da República enquanto Titular do Poder Executivo ou pelo Presidente da República, enquanto Órgão de Soberania? Essa “dicotomia constitucional”, com respaldo no artigo117.° e seguintes da CRA 2010, coloca sobre uma única entidade legitimidade, competências e funções atribuídas a outras entidades ou organismos do Estado dificultando, assim, a competência natural de outros Órgãos Soberanos, exercerem a sua função fiscalizadora, sobre tais entidades, sob dependência directa de um Órgão soberano dicotómico acabando este por blindar ou criar uma parede envidraçada e intocável sobre os actos de governação (o artigo 105.º, n.° 1 CRA 2010 indica que o “executivo” não é Órgão de Soberania, logo o TPE que exara decisões presidenciais ao invés de executivas, como deveria ser, tem o dever constitucional de responder às questões de fiscalização da Assembleia Nacional).

Por conseguinte, no quesito de “prestação de contas, para o equilíbrio de poderes”, tomemos em consideração o acórdão 319/2013 do tribunal constitucional. Este, ao rejeitar a aplicação desse mecanismo de controlo, viabilizou e “cimentou” a concentração do poder político nas mãos de um grupo restrito por considerar que a Constituição atribui ao PR funções de coordenação e de supervisão na relação com a AN (daí o anúncio das transmissões dos debates e a construção do ginásio). Diz mais ainda que, nos termos da Constituição, o Executivo não está subordinado ao Legislativo (de facto mas, por ser um órgão executor do Estado e, ao abrigo da interdependência de funções, a fiscalização é possível. O acórdão reconhece esse dualismo ao afirmar que a AN, em casos específicos, tem legitimidade para fiscalizar).

Os juízes do constitucional sinalizaram ainda que o parlamento fiscaliza “directamente” quando o PR executa as autorizações legislativas da AN ou os decretos legislativos presidenciais provisórios (alguém se lembra por acaso de o parlamento fiscalizar o executivo sobre os três períodos do estado de emergência?). Por outras palavras, ao abrigo dos artigos 161.º, 162.º, 164.º e 165.º da CRA2010, o TPE “deve” prestar esclarecimentos! Indubitavelmente e devido à “dicotomia constitucional” entrincheirada na Constituição, os juízes não tinham como evitar que o A-319/2013 se transformasse em jurisprudência contraditória na medida em que, em democracia, a fiscalização dos actos da governo é fundamental não só para a credibilidade das instituições mas também para a “verticalidade” dos eleitos pelo povo que, por inerência dessa representatividade popular, partilham com limites e de forma interdependente funções de gestão do Estado.

Desse modo, temos o verificador da legalidade (Judiciário), o legislador e fiscalizador (Assembleia Nacional) e outro que governa ou executa (aqui não é claro se é governo ou uma extensão da presidência da república já que o PR como Órgão Soberano e TPE é coadjuvado por integrantes da presidência da república, com funções de governação e de supervisão, sobre os demais membros do governo. Nos anos 90, uma situação idêntica envolveu o Futungo de Belas e a sede do partido culminando com exonerações e afastamentos em algumas estruturas de topo do partido). Por outro lado, é aceite que, dentre os três poderes, haja um que “personifica” o conceito de Nação o que não significa que exerça o “tal” poder coordenador que o A-319/2013 utilizou para subverter e esvaziar a legítima competência fiscalizadora da AN. Essa “personificação” coube ao titular de um Órgão Soberano com poder executivo (artigo 108.º, n.°1 e n.°4 CRA 2010), em respeito ao princípio de separação funcional.

Por conseguinte, a proposta de alteração parcial da Constituição foi feita pelo TPE (artigo 120.º, alínea i) e, nessa qualidade, é legitimo e inequívoco o direito constitucional da AN em fiscalizar os actos do governo. Entendamos, pois, que a fiscalização não incide sobre as competências do Órgão Soberano de tutela (até porque a “governação” do país não é da competência desse órgão) mas sim sobre a forma como o executivo gere os activos do Estado ao seu dispor e em nome de todos. Percebe-se que o factor histórico pesou na atribuição das competências ao Presidente da República. Contudo, a realidade tem vindo a demonstrar que todo esse esforço “protectivo” nos mantém indefinidamente à deriva dos princípios democráticos, pois legitimou situações de usurpação e interferência na gestão corrente do Estado em proveito próprio ou de um grupo político (fenómeno, aperfeiçoado desde 2010) e que temos sido manifestamente incapazes de correctamente corrigir de forma definitiva.

POR: Carlos Ribeiro