“Erotismo” nas danças infantis ganha corpo na periferia e na TV

“Erotismo” nas danças infantis ganha corpo na periferia e na TV

Muito já se comentou e ainda comenta-se em relação a este tipo de comportamento e nada de concreto tem sido feito por quem de direito para pôr cobro a esta situação

Já lá se foi o tempo em que a educação de berço, a ética e determinados procedimentos transmitidos pelos progenitores e demais intervenientes, fez de todos nós, e dos nossos descendentes, excelentes cidadãos por onde quer que estivéssemos e fôssemos. Hoje, este tirocínio é, simplesmente, ignorado por muitos, por entenderem que a preservação dos valores cívicos e morais, atrasa a vida, e não medindo as consequências daí resultantes, deixam-se levar pelos excessos da propalada globalização. Nesta primeira parte da nossa reportagem, da qual são interlocutores figuras ligadas à família, docência, ao universo das letras e formação no domínio da dança, pudemos constatar a enorme preocupação de cada um em relação ao erotismo nas danças infantis, que está a ganhar corpo na cidade capital do país, sobretudo na periferia.

Um fenómeno, que segundo os nossos interlocutores, vem sendo relatado e debatido localmente, há já algum tempo, e com uma certa preocupação e cautela, face ao perigo que representa, mas não tem surtido os efeitos desejados. Angustiados, dizem-se agastados com a situação, que a cada dia que nasce, agrava-se, influenciando negativamente as nossas crianças, na sua forma de estar, de ser e no lazer, não obstante algumas correcções, de que têm sido alvos por parte dos seus tutores, e os sucessivos apelos de quem de direito, no sentido de disciplinar também os adultos que perfilham o mesmo tipo de comportamento. Recordam que, devido à sua gravidade, o facto foi, em 2014, reportado ao Ministério da Cultura, que na altura levou a então titular, Rosa Cruz e Silva, a reunir com os jovens kuduristas, especialmente dançarinos e dançarinas, promotores de espetáculos, e não só, no Centro de Formação de Jornalistas (CEFOJOR), para moderarem a forma de exibição em palco e noutros recintos. Curiosamente, a mensagem foi muito bem acatada. Hoje, passados sete anos, o facto volta a repetir-se e em larga escala, evolvendo jovens que, para o efeito, não têm mesmo usado roupa interior. Exibem-se de qualquer forma e à sua maneira, mas, ainda assim, são convidados de certos programas televisivos de entretenimento.

Atentado ao pudor e à sociedade

Indignados, os interlocutores acusam tais órgãos de comunicação, particularmente a televisão, de promover nos seus programas de entretenimento algumas danças consideradas eróticas e com algum exagero por estes jovens, como autêntico atentado ao pudor, à mulher e à própria sociedade. Recordam com muita nostalgia, que, num passado recente, as televisões eram mais rigorosas quanto ao conteúdo a exibir e o tipo de grupos a convidar, para não acontecerem situações constrangedoras. E dizem mesmo, com alguma aflição, que a sociedade continua a perder os seus valores, realçando que uma sociedade sem valias, é uma sociedade pobre, razão pela qual, as nossas televisões deviam ser selectivas e fazer um rastreio do tipo de dança a exibir. Alertam, por isso, aos seus responsáveis no sentido de reverem tal situação, sobre os perigos que podem daí advir, futuramente, caso não se tomem medidas realistas, e desafiam os mesmos a pautarem pela sua tarefa de informar e de formar com conteúdos elucidativos de carácter social e cultural, à semelhança do que faziam anteriormente, ao contrário de promoverem a promiscuidade, que em nada contribui para as boas práticas dos nossos jovens.

Interlocutores

José Filipe, de 43 anos, docente do ensino primário, no bairro Neves Bendinha, município do Kilamba Kiaxi, é uma dessas figuras que, preocupado com a situação, advoga a necessidade de se apostar cada vez mais na educação juvenil e da sociedade, assim como da família, para a solução do referido problema. O professor admite haver, actualmente, em Luanda, uma certa apetência dos jovens, em seguir, imitar e transportar para o seu seio, tudo o que vêem de países ocidentais, sobretudo, sem medir as consequências. Apontam as danças, muitas delas consideradas eróticas, como um grande risco para a nossa sociedade, sobretudo para as crianças, por estarem sujeitas a situações que não sabem gerir, dada a pouca maturidade característica das suas faixas etárias. Uma situação que se vem alastrando em larga escala, em zonas periféricas, afectando grande parte delas no lazer e na forma de estar.

O docente realça que, cada país tem a sua cultura, hábitos e costumes, e recorda que Angola é detentor de um vasto e rico acervo de danças não só patrimoniais, como também de salão e podem muito bem ser exploradas, e exibidas de acordo aos seus padrões, não havendo necessidade de seguir a promiscuidade, imitando o que é inadequado à nossa convivência social. “Angola tem muito boa gente criativa e bons bailarinos, que pela sua dinâmica, performance habilidades, dedicação e maneira de ser surpreenderam o mundo. Não houve nenhum erotismo ou gesto indecente. Porquê que agora estes resolvem apegar-se a coisas maléficas, que em nada nos identificam”, questionou o educador. “O que é nosso é nosso. Deve ser muito bem representado respeitando os seus padrões. O que é dos outros, é dos outros. Nada igual. Deixemos de imundices”, desabafou José Filipe. O docente lamenta, igualmente, o facto de Luanda, a capital do país, ter sido sempre mal referenciada como o epicentro da desordem e onde tudo pode acontecer.

“Como sabéis, a família, a religião e o Estado desempenham um papel importante na educação da juventude e da sociedade. Porém, o que acontece hoje é que o espírito de deixa andar parece estar a tomar conta de tudo. Poucos são os que acatam conselhos. O resto está voltado à globalização. Não se consegue filtrar o que é bom e o que é mau. Que tristeza!” Questionado quanto ao seu ponto de vista em relação aos estilos Kuduro, a Tarraxinha e outras danças que, eventualmente, vêm sendo exibidas, o docente disse não se opor aos estilos, desde que os seus praticantes não exagerem na forma de as exibir. Mas, a forma como muitos dançarinos as têm exibido retira a sua particularidade e valor.

“O Kuduro é bom, é nosso. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos como era dançado com dignidade e animação. Não tinha nenhum gesto indecente. Hoje vemos jovens que, ao dançarem, além do exagero nos gestos e nos compassos, reboladas, enfim, fazem-no sem roupa interior e são adultos. Que ilações tiram os mais pequenos? A tendência é seguir o seu ritmo. É feio, lamenta o professor, adiantando que alguns kuduristas quando são convidados a participar em programas televisivos de entretenimento, fazem-no sem civismo e não sabem estar. “A falta de pesquisa e abordagem técnica no tratamento de algumas matérias do fórum cultural, por parte dos nossos profissionais da comunicação, tem dificultado a compreensão de muitos acontecimentos e evoluções nesta área. É necessário rigor”, “Santana” considerado pela crítica como passaporte para o cinema angolano na Netflix,

Ausência de valores cívicos

Opinião similar é manifestada pela escritora Marta Santos. Insatisfeita, refere que, na qualidade de mãe, faz parte dos progenitores preocupados com os valores cívicos que são transmitidos aos filhos. Admite que a maior parte dos pais preocupa-se com a educação, em casa, insurgindo-se, dando voz para que certos programas tenham hora própria, ou mesmo que os seus filhos não frequentem festas em que certas práticas são vistas como normais e aceitáveis. A literata apela maior responsabilidade e rigor aos órgãos de comunicação na selecção dos seus conteúdos. “Não quero que se confunda o termo com censura…até porque as danças sensuais remontam, mas a banalização do corpo e a adultarizaçāo é um facto que afecta o crescimento saudável de qualquer sociedade”, justificou. A escritora realça, igualmente, que o sucesso de um programa televisivo passa, necessariamente, pelo seu conteúdo quando obedece a regras da sociedade e leis que imperam no país.

Porém, admite que o Estado tem estado a falhar por não sancionar determinados canais, cabendo ao Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social; da Acção Social, Família e Promoção da Mulher e da Cultura, Turismo e Ambiente a última palavra neste sentido. Marta Santos realça que, a democracia tem sido confundida com anarquia e, neste caso particular, a erotização acaba por tomar conta do que deveria ser harmonização. A escritora considera a dança uma expressão da arte linda, e quando um dançarino não passa beleza, naquilo que faz, desce para lá do burlesco. Em literatura, a escritora destaca o estado de fusão entre o artista e a sua arte, a beleza e a harmonização, o que na sua óptica, os nossos bailarinos não têm, preocupando-se apenas em mostrar o corpo. “Tem de haver beleza, mensagem positiva, e não primar pela vulgaridade, para que as pessoas possam nela rever-se, uma vez que a televisão tem um peso enorme, que em conjunto com a falta de vigilância da família e um ministério em inércia faz um rombo brutal na personalidade”, reforçou.

Dançar kuduro não é imoral

Já a educadora e escriba, Antónia de Fátima, vai mais a fundo e diz que dançar e ouvir Kuduro ou Tarrachinha não é imoral. Imoral, sublinhou, são alguns gestos e, ou palavras obscenas que algumas pessoas querem implementar neste tipo de dança ou música. Realça que uma sociedade sem valores é pobre, recordando que num passado recente as televisões eram mais rigorosas quanto ao conteúdo a exibir, e o tipo de grupos a convidar, para não acontecerem situações constrangedoras. “Penso que as televisões sendo órgãos de difusão massiva, devem ser selectivas e fazer um rastreio do tipo de dança a exibir nas mesmas, aconselhou. Antónia de Fátima recorda ainda que, muitas vezes, estes programas passam num horário em que os pais não estão em casa, ficando assim difícil o controlo por parte destes. A par dos programas habituais de entretenimento, nos canais oficiais, a escriba aponta também outras plataformas, que pela diferença de horários, têm servido de recurso a este tipo de dança, mas, que a partir dos mesmos, os pais podem accionar o mecanismo de bloqueio para que as crianças não consigam acessá-las sem a supervisão de um adulto.

Por outro lado, reconhece a flexibilidade das crianças, ao aceitarem as realidades que lhes são impostas com muita facilidade, uma vez que vivem no mundo da imitação. “Os jovens seguem modas e querem ser o centro das atenções. Saber dançar significa estar na moda. Com base nestes factores, a televisão aproveita o facto para ter maior audiência, porque nos dias de hoje existe a concorrência e este tipo de dança, infelizmente, tem o seu público-alvo. Este modernismo que se impõe na sociedade angolana, não pode estar acima da ética e dos valores morais”, esclareceu. Já no que aos apresentadores diz respeito, disse ser natural que estes se entusiasmem e se deixem levar, e aconselha-os a não perderem o bom senso para não serem ridicularizados pelos telespectadores. “Os gestos exagerados dos dançarinos fazem parte do repertório do grupo para atrair o público”. No entender da educadora, a questão fundamental, que se põe a partir desta realidade, é saber se os programas transmitidos pelos meios de comunicação social, as letras de algumas canções difundidas por estes, e não só, terão de facto um efeito negativo no comportamento das crianças e jovens.

Coreógrafa preocupada

Já a coreógrafa e investigadora, Ana Clara Guerra Marques, considera o fenómeno erotização infantil, uma enorme preocupação, salientando que as crianças estão sujeitas a situações que elas não sabem gerir, dada a pouca maturidade característica destas faixas etárias. A professora disse considerar o corpo um instrumento sagrado da dança, que não pode profanar-se nem ser utilizado apenas como objecto de sedução. Refere que, caso a opção seja de facto a dança erótica, podem fazêlo, mas em lugares próprios e de acesso restrito a adultos, não envolvendo crianças nessas práticas. Aconselha aos jovens que se dizem dançarinos, a deixarem de imitar, o que não lhes tornará artistas, e aconselha-os a procurarem formação de modo a que sejam mais criativos e inovadores. Reconhece, que cabe à família, e aos sectores da Educação e da Cultura, o dever de educar, mas, que o que se passa no nosso país, segundo a coreógrafa, são os gravíssimos problemas ao nível desses três sectores (Família, Educação e Cultura).

Ana Guerra Marques considera que a família urbana (não rural) é, de um modo geral, desestruturada em que os pais lutam diariamente pela sobrevivência, deixando as crianças em casa ou na rua expostas a todas as adversidades. Regressando à noite, a hora de descanso, é partilhada com famílias numerosas para as dimensões das habitações e, neste caso particular, as crianças vêem e ouvem tudo o que se passa nesses pequenos espaços sem qualquer privacidade. Recorda que não sendo acompanhadas pelos pais, a educação formal também não cumpre na íntegra a sua função, apresentando, igualmente, problemas enormes. Um outro exemplo a que se referiu Ana Clara Guerra Marques é o das escolas, por registarem o maior número de crianças e poucas salas de aula, o que tem o seu efeito contraproducente nas mesmas por turmas e professores.

O sector da Cultura, segundo a investigadora, de igual modo, nunca possuiu a devida relação com a educação, especialmente no que toca a estratégias concertadas para uma formação integral das crianças e jovens. Os poucos programas que existiam, acrescenta, foram aos poucos desaparecendo ou perdendo a força da qualidade que possuíam. Porquê? Questiona. “Os resultados estão à vista: pessoas mal formadas (vítimas de um sistema não eficiente) que recorrem à cópia de outras realidades onde a erotização das crianças é um facto (preocupante, quanto a mim)”, desabafa. Como exemplo, a professora refere-se a outras realidades em que a imagem da mulher é objecto sexual, sobrepondo-se à sua dignidade, integridade e responsabilidade na sociedade, causando uma falsa ideia de emancipação. “Como podem estas mulheres educar os filhos e as filhas seguindo este modelo de futilidade baseada, unicamente, na sensualização da imagem? Mas que alternativas possuem elas?, volta a questionar.

Solução

Como solução, aponta uma forte aposta na educação da sociedade, dos professores e da própria família. Em que termos? Melhorar o ensino e a oferta cultural. Nunca pela censura ou com o recurso a valores religiosos fundamentalistas e castradores (os mesmos que um dia, no passado, destruíram as nossas práticas culturais e religiosas, acusando-as de feitiçaria e de inferioridade) e a falsos moralismos.

Acção da televisão

Quanto às televisões, a investigadora realça que, se o público deixar de se rever nesses programas e produtos básicos, elas deixarão de os promover ou, pelo menos, não ocuparão percentagens tão significativas da sua programação. Porém, a verdade é que no nosso contexto de catástrofe social, deveria haver mais responsabilidade. Já em relação aos responsáveis dos órgãos de comunicação, refere que deveriam começar a substituir alguns programas, investir na diversidade de conteúdos e na qualidade, dando ao público a possibilidade de escolher. No que aos promotores diz respeito, adianta que estes continuarão a explorar aquilo “que está a bater”. Não tenhamos dúvidas quanto a isto. Há que mudar o paradigma do que “está a bater”. “Acho que se deve proibir a participação de crianças nesses programas e espetáculos para adultos, quer como integrantes, quer como espectadores”, finaliza