PGR condenada a indemnizar cidadã chinesa com Kz 60 milhões por prisão ilegal

PGR condenada a indemnizar cidadã chinesa com Kz 60 milhões por prisão ilegal

A Procuradoria-Geral da República de Angola (PGR) foi condenada, pelo Tribunal Provincial de Luanda, a pagar uma indemnização de 60 milhões de Kwanzas a uma cidadã chinesa, que atende pelo nome de Pan Ying Ying, por a ter privado da liberdade arbitrariamente. A pena foi confirmada, recentemente, pelo Tribunal Supremo

A sentença foi proferida a 25 de Outubro de 2013, por um dos juízes da 2ª Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda. Inconformada com a decisão a PGR interpôs recurso junto do Tribunal Supremo, na esperança de ser inocentada. Porém, passados cerca de sete anos, uma equipa de juízes da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro deste tribunal superior, encabeçada pela magistrada Anabela Vidinhas (como relatora), coadjuvada por Joaquina Nascimento e Molares de Abril, analisou o caso e, a 27 de Agosto de 2020, redigiram o acórdão, no qual mantém a decisão do tribunal de primeira instância.

Em causa está o facto de Pan Ying Ying ter sido privada da liberdade durante 23 dias, a contar de 16 de Agosto de 2011, por ordem da procuradora da República junto do Comando da Polícia Nacional do Kilamba Kiaxi, no projecto Nova Vida, por alegadamente ter cometido um crime de burla por defraudação. A detenção, classificada de arbitrária, ocorreu à luz do processo-crime 4889-2011, movida por um casal, identificado por Joana Mateus Pedro e Pedro, contra a construtora Kimway Group, que era gerida pelo marido de Pan Ying.

O casal Pedro intentou a acção judicial por se considerar lesada pela empreiteira por alegadamente não ter honrado com o contrato de construção da sua residência, em quatro meses úteis. Em contrapartida, pagaram 100 mil dólares, o que correspondia à metade do preço global da obra que foi suspensa logo na fase de arranque, por não ter sido licenciada pelo Governo. Entretanto, apesar de não ter vínculo laboral com a empresa, Pan Ying foi envolvida no processo por auxiliar, ocasionalmente, o marido, Jiang Bin, servindo de tradutora para facilitar a comunicação deste para com os clientes e parceiros angolanos que não dominam o mandarim.

Ela foi detida, por conveniência da representante da PGR junto do Comando de Polícia do Kilamba Kiaxi, de modo a obrigar o esposo a devolver o montante acima mencionado, acrescido de 45 mil dólares, o que perfaz um total de 145 mil dólares. Depois de ter sido liberada, a operária que auferia mensalmente 1.800 dólares, descrita como uma pessoa sem grandes rendimentos, intentou a referida acção contra o Estado – PGR -, representada por João Maria de Sousa.

As exigências de Pan Ying

Pan Ying alegou que, em consequência da sua prisão ilegal, deixou de trabalhar por vários dias, teve de suportar condições degradantes e sub-humanas na cadeia e lhe foram causados vários danos morais e patrimoniais. Por sentir que os seus direitos foram violados, a cidadã asiática, residente em Luanda, exigiu o pagamento de uma indemnização, por danos não patrimoniais, no valor de 110 milhões de Kwanzas, e 5 milhões de Kwanzas por danos patrimoniais. Porém, o tribunal fixou a indemnização em 60 milhões de Kwanzas, por considerar que a PGR andou mal neste processo.

“Face ao exposto e nos termos e fundamentos explanados, julgo parcialmente procedente o pedido formulado pela autora [Pan Ying] e, em consequência, ordeno o réu [PGR] no pagamento da quantia de 60 milhões de Kwanzas”, lê-se na sentença. O tribunal diz ainda que, um dos erros consiste no facto de a magistrada ter validada a prisão preventiva sem fundamentar devidamente, ou seja, não invocaram argumentos que permitiam alicerçar os indícios fortes da existência do crime, a sua imputação à Pan Ying e a sua admissibilidade.

Esclarece que os danos não patrimoniais ou morais resultaram da conduta da PGR. Puderam constatar, na inspecção judicial, que dos 23 dias que Pan Ying esteve presa preventivamente, esteve oito dias nas celas do Comando do Kilamba Kiaxi e na Esquadra do Golfe I, tendo sido a posterior encaminhada para a antiga DPIC. Sublinhou ainda que constataram que na esquadra do Golfe, onde ficavam, na data dos factos, presas preventivamente as mulheres que são detidas no Comando do Kilamba Kiaxi, “a cela feminina não tem camas, as presas dormem no chão, o espaço não é arejado, sem ventilação, o cheiro é nauseabundo, não tem água corrente, o gerador não funciona e a casa de banho está em péssimas condições”.

A história por detrás da sentença

De acordo com o acórdão do processo registado no Tribunal Supremo como o número 2093/14, a que OPAÍS teve acesso, no dia posterior à celebração do contrato, a 11 de Maio, a empreiteira fez deslocar um grupo de 10 trabalhadores chineses ao local da obra, onde iniciou a sua execução. Nove dias depois, o Serviço de Fiscalização ordenou a suspensão da obra por não estar licenciada. “Sem a licença, o empreiteiro corria o risco de perder o material de trabalho caso a fiscalização o apreendesse decorrente da contravenção patente”, diz. Insatisfeito, diz o documento, o casal Pedro passou a exigir a empreiteira que desse continuidade aos trabalhos mesmo sem ter a licença da obra, ao que não foi bem-sucedido.

O que só veio a acontecer a 5 de Junho, depois de ter sido emitida a licença. Porém, o empreiteiro se deparou no local com o aumento da quantidade de trabalho, muito aquém do acordado inicialmente, situação que, em seu entender, impunha uma adaptação à nova realidade. Ambos se desentenderam. O dono da obra impôs a pagarem dos trabalhos e a restituição da diferença que resultava do trabalho já efectuado e a parcela inicialmente paga, ao que foi aceite. No entanto, no dia 15 de Julho, o casal Pedro passou a exigir a devolução dos 100 mil dólares pago inicialmente, ao que lhe foi negado com o fundamento de que antes da suspensão da obra por falta de licença já haviam sido aplicados 35 mil dólares com a escavação e o início da construção da base do imóvel.

Segundo o documento que vimos citando, o dono da obra, “usando de influências”, levou no dia 12 de Agosto para uma esquadra de Polícia um dos funcionários da empreiteira, identificados apenas por João, a Pan Ying e o seu marido, Jiang Bin. “Para que, sob coacção e ameaças de os prenderem, assinassem um compromisso de restituição de um montante de 145 mil dólares, ao que foi consumado”. Como não desembolsaram o montante acima referido, no dia 16 de Agosto a senhora Pan Ying foi presa, sob a acusação de ter cometido o crime de burla por defraudação. Situação que não agradou aos seus defensores filiados ao escritório de advogado Evaristo Maneco e Associados, por considerarem tratar-se de uma relação estritamente civil, pelo que solicitaram a sua soltura mas não foram atendidos.

“Não obstante as várias reclamações e protestos a uma prisão manifestamente ilegal, a Procuradora junta daquele Comando de Polícia insistia em continuar com a situação carcerária”. Deste modo, passaram a encarar que esse era apenas um mecanismo usado para coagir o gestor da empreiteira a pagar o valor acima mencionado em troca da liberdade da sua mulher. Entretanto, denunciaram o que estava a ocorrer ao então Procurador Geral da República, João Maria de Sousa, e ao procurador junto da então Direcção Provincial de Investigação Criminal, que, em resposta, face a gravidade da prisão ordenaram a libertação imediata de Pan Ying

A defesa da PGR

Em sua defesa, na contestação enviada ao Tribunal, a PGR diz que a prisão não foi um mecanismo de coação do empreiteiro ao pagamento da dívida aos donos da obra, mas por existir a linha ténue entre o ilícito civil e o criminal, e por ela ser, sem seu entender, cúmplice. Invocou ainda que nas reclamações enviadas ao então PGR, João Maria de Sousa, e ao procurador junto da extinta Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), não determinaram a soltura da mesma, pelo que tal ocorreu por excesso de zelo por parte do procurador Carlos Manuel dos Santos. “Em momento algum houve imprudência profissional dos órgãos e funcionários da PGR, agindo apenas nos termos da lei (…) e a autora [Pan Ying] não aprovou as ditas condições degradantes e sub-humanas a que diz ter estado submetida”, diz, na contestação.

No seu ponto de vista, neste caso não se verificaram os pressupostos da ilicitude e da culpa na actuação dos magistrados do Ministério Público, uma vez que a relação dela com o empreiteiro nunca foi efémera, por serem marido e mulher, e a mesma se apresentava como trabalhadora da empresa. Para dar ênfase, disse que “é tradutora, da mesma, profissional e não casual”, tendo sido ela quem propôs ao dono da obra a empresa do seu marido.

Num dado momento, pararam de atender os telefonemas dos donos da obra, metendo-se em parte incerta pelo que não devia ser afastada da responsabilidade criminal. “Analisados os facos, concluímos que estão efectivamente reunidos os requisitos do crime de burla por defraudação, uma vez que ela bem como o seu marido sempre agiram no intuito de enganar e prejudicar terceiros”, alegou a PGR.

Em defesa da magistrada que ordenou a prisão, a PGR diz que em momento algum houve qualquer intenção dela prejudicar a Pan Ying e que não se vislumbra qualquer tipo de dolo na sua actuação. Enfatizou, não se verificou ilicitude nos actos praticados pela magistrada neste processo, uma vez que agiu no âmbito das suas funções e no estrito cumprimento da lei, assegurando-se de que os elementos do tipo legal de crime se encontravam reunidos. “Não se pode falar em culpa pois, para o crime pela qual vinha acusada, não era admissível a liberdade provisória”, afirma, acrescenta de seguida que “para que surja a obrigação de indemnizar é necessário que se verifiquem cumulativamente todos os pressupostos da responsabilidade civil, o que não acontece”. Contactado pelo OPAÍS, o porta-voz da PGR, Álvaro João, afirmou que não tem conhecimento do assunto.